Engana-se quem pensa que o papel de um atleta se resume a dar alegria aos torcedores. Ídolos de milhares de jovens, eles se tornam exemplos. Suas atitudes são imitadas. Assim, os astros do esporte passam a exercer também um papel social. Craques do futebol como Raí, do São Paulo, e Leonardo, do Milan, as ex-jogadoras de basquete Paula e Hortência (hoje dirigente do Paraná), o técnico de vôlei Bernardinho e o iatista Lars Grael, entre outros, têm mostrado que a um ídolo cabe uma tarefa bem mais nobre do que fazer o seu trabalho e desfilar em carrões importados. Com uma imagem de sucesso, credibilidade e espaço na mídia, eles ajudam a viabilizar projetos educacionais que podem melhorar o futuro de centenas de crianças carentes. Raí e Leonardo criaram há um ano a Fundação Gol de Letra, no bairro do Tremembé, na periferia da zona norte paulistana. No prédio de uma escola pública desativada, 150 crianças de 7 a 14 anos têm aulas de futebol, vôlei, basquete, pintura, música, dança e informática. Os jovens desenvolvem a leitura e a escrita, organizam passeios e assistem a shows e peças teatrais. Para montar o corpo de educadores, psicólogos e assistentes sociais, os jogadores buscaram orientação em organizações não-governamentais, como a Fundação Abrinq. “Pensamos em fazer alguma coisa porque nos sentíamos privilegiados financeiramente”, explica Raí. “Muitos de nossos colegas não tiveram uma boa formação e alguns, com menos sorte, caíram no mundo das drogas. Por isso, dando chance e oportunidades a essas crianças mostramos que é possível elas terem uma vida melhor.”
O projeto não exigiu apenas vontade política. O ídolo são-paulino e o colega Leonardo desembolsaram R$ 500 mil cada um. O dinheiro foi gasto com a reforma do prédio e a construção de quadras esportivas, salas de dança, teatro e pintura. “Agora, vamos tentar envolver o meio esportivo nessa causa”, anuncia Raí. Amigos de clube e adversários nos gramados prometeram vestir a mesma camisa. Entre eles, Beletti, do São Paulo, Ricardinho, do Corinthians, Zetti, do Fluminense, César Sampaio, do Palmeiras, e Rivaldo, do Barcelona. Da Itália, Leonardo também tem conseguido ajuda de atletas.

Foto: Ricardo Giraldez
Ana Moser quer levar vôlei para as escolas públicas; Hortência e Netinho oferecem aulas de basquete na Cohab

Excelência – Bons exemplos se reproduzem em outras modalidades. Em Curitiba, o time de vôlei do Rexona, comandado pelo técnico da seleção brasileira feminina Bernardinho, criou um Centro de Excelência de Voleibol. Em parceria com o governo do Estado, técnicos e instrutores do Rexona ensinam vôlei a 3.500 crianças e adolescentes de escolas públicas. O projeto ganhou o Prêmio Top Social da Associação dos Dirigentes de Vendas do Brasil (ADVB). A sede é o ginásio do Tarumã, na capital paranaense, onde 750 crianças têm aulas. Outros 22 núcleos foram distribuídos por 18 cidades do Estado. “A maioria é criança de baixa renda, que não pode frequentar clubes ou academias esportivas”, observa Bernardinho. “O objetivo não é formar campeões, embora possam sair alguns daqui. Mas o acesso ao esporte já vai melhorar muito a vida desses jovens.” Uma das motivações é o fato de as crianças estarem perto de seus ídolos. Aluna da sétima série e filha de um caminhoneiro, Tássia de Oliveira, 13 anos, sai de casa às 6h40 da manhã e toma três ônibus para chegar ao ginásio, nos dias de treino. “Quero ser uma grande jogadora e ajudar minha família”, sonha a menina.

A mesma experiência de sucesso no vôlei repete-se no basquete. O governo do Paraná criou também um Centro de Excelência de Basquetebol, que atende 1.600 crianças. O ensino foi levado para 11 municípios paranaenses. Daí, estendeu-se até a cidade de Carapicuíba, na Grande São Paulo, numa parceria com o projeto Família Negritude, criado pelo cantor Netinho, do grupo de pagode Negritude Júnior. A inspiradora dessa iniciativa foi a ex-jogadora Hortência. “As prefeituras têm oferecido as quadras de esporte, os funcionários da rede pública e transporte. Nós damos o treinamento”, afirma Hortência. Adolescentes infratores também participam do projeto.

Foto: Carlos Magno/Felipe Golfman

Em Niterói, esportes nobres como o iatismo agora estão ao alcance de adolescentes carentes, graças à iniciativa do campeão Lars Grael

Até esportes nobres como o iatismo já estão ao alcance de crianças menos privilegiadas. O garoto Leonardo Rodrigues, 13 anos, por exemplo, nem imaginava o que era velejar e pensava em ser um goleiro famoso. Hoje, é campeão estadual de iatismo no Rio e já sonha até em defender o Brasil numa Olimpíada. Tudo isso graças ao trabalho dos irmãos Torben e Lars Grael, que criaram o Projeto Grael, em Niterói. Eles firmaram um convênio com a prefeitura e começaram a ensinar as técnicas do iatismo para alunos da rede pública, de dez a 15 anos. Leonardo assistiu a uma palestra dos dois campeões olímpicos em sua escola e se animou. Integrou, depois, a primeira turma de formandos do projeto. Os jovens aprendem ainda noções de construção naval e navegação turística. “Não existe educação sem a prática do esporte. Nosso objetivo é social”, argumenta Lars, atualmente diretor do Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto (Indesp), ligado ao Ministério do Esporte.

Futebol e cultura – Essas iniciativas bem-sucedidas empolgam outros atletas veteranos. O ex-centro-avante do Atlético Mineiro Reinaldo, depois de um período conturbado por causa de seu envolvimento com drogas, se recuperou e quer provar que, na área social, é tão craque como era na área dos adversários. Depois de criar o time do Belo Horizonte Futebol e Cultura, ele vendeu um terreno que possuía e com o dinheiro – cerca de R$ 700 mil – está construindo um estádio. Em parceria com empresas, pretende oferecer também aulas de inglês, francês, pintura e piano para seus atletas mirins. Outras ex-jogadoras como Ana Moser, do vôlei, e Magic Paula, do basquete, seguem na mesma linha: querem repetir na filantropia o talento demonstrado nas quadras. Ana Moser deseja ensinar vôlei em escolas públicas e aguarda patrocínio para bancar o projeto. “O custo é de apenas R$ 5 por aula, para cada criança”, lembra Ana, que abandonou as quadras recentemente. Paula está criando uma fundação em Piracicaba (SP), com apoio da prefeitura local, e tem discutido o projeto com o Conselho Nacional de Defesa dos Adolescentes (Conanda). “Vamos oferecer basquete, futebol, ginástica, atletismo e, principalmente, formar cidadãos”, promete Paula. O esporte brasileiro, assim, talvez não consiga ainda virar o jogo. Mas a entrada em campo do time da solidariedade já é uma vitória.