Legítimo herdeiro da tradição de malandragem do samba carioca, Zeca Pagodinho escolheu um jeito bem-humorado para saudar os amigos João Nogueira e Moreira da Silva. Em vez de choro e velas, ergueu um brinde com cerveja, é claro, em memória dos bambas falecidos num espaço de menos de 24 horas, no Rio de Janeiro. João Nogueira, 58 anos, morreu na segunda-feira 5 de infarto fulminante. Moreira da Silva, também conhecido como Kid Morengueira, 98 anos, sofreu uma falência múltipla dos órgãos na terça-feira 6. As duas mortes empobreceram a MPB e vestem de luto a nata da boêmia carioca. “Os dois cantaram a alegria, representaram o bom humor da periferia do Rio. Não iam gostar de ver ninguém triste”, justificou Zeca Pagodinho em seu brinde.

Apaixonados pelo Flamengo e pelo Rio de Janeiro, João e Moreira eram malandros à moda antiga. João Nogueira – autor de Súplica, Um ser de luz e Minha missão, entre outras – era casado, pai de dois filhos e virava a noite no samba, sempre desobedecendo aos médicos, com seu copo de cerveja. De sua pena saíram versos galanteadores, como os da inédita Negra luz, uma ode à beleza da atriz Isabel Filardis. Moreira da Silva, sempre de terno de linho branco e chapéu-panamá, ao contrário, levava vida espartana. Todas as noites, antes de dormir, o popularizador do samba de breque em sucessos como Arrasta a sandália e Acertei no milhar tomava um prosaico copo de leite.
João morreu às vésperas de gravar seu 19º disco. Na próxima semana, no Tom Brasil, em São Paulo, faria dois shows para registrar em CD 14 canções, sete delas inéditas. Os amigos do fundador do Clube do Samba tentam convencer os sobrinhos do cantor e compositor a não deixar que as músicas inéditas fiquem engavetadas. “Se os novatos ouvissem a obra do João, provavelmente o samba teria mais qualidade”, afirma Dudu Nobre, 26 anos, apontado nas rodas de bambas como um dos sucessores da tradição.

Foto: Mário Leite
João contrariava os médicos e nunca abandonava o copo de cerveja

Kid Morengueira estava internado há 38 dias. Foi hospitalizado numa clínica particular, no Rio de Janeiro, sendo depois transferido para o Hospital dos Servidores do Estado porque a família não tinha condições de pagar R$ 4 mil de diária no Centro de Terapia Intensiva da clínica. Em 67 anos de carreira, ganhou fama de cronista da vida boêmia da cidade. Bem-humorado e frasista nato, não perdia a chance de fazer piada. “Bom malandro é o que ri por último”, dizia. Num de seus rompantes, sobrou gozação até para os tenores Luciano Pavarotti, Jose Carreras e Plácido Domingo, parodiados no impagável álbum Três malandros in concert, no qual dividiu os vocais com Bezerra da Silva e Dicró. “O Moreira merecia uma estátua por sua importância para o samba carioca. Ele era uma figuraça. Quando se mudou para o Catumbi, dizia que havia escolhido o bairro porque, quando chegasse a hora, poderia ir a pé para o cemitério”, conta Dicró. Era só brincadeira. Moreira pediu aos parentes para ser cremado