Zélia Dias passou grande parte da vida atrás de uma máquina de costura. Foi assim, com a ajuda do marido, o compositor Aluísio Dias, parceiro de Cartola e Carlos Cachaça, que criou três filhos e ajudou a cuidar dos sete netos. Aos 74 anos, ela agora se prepara para conhecer a Europa. Vai visitar Holanda, Alemanha, Áustria, França e Inglaterra, lugares que conhece apenas por fotografias, imagens de televisão ou de ouvir falar. “A viagem vai ser corrida, mas minha filha já me disse que não posso deixar de ver a torre na França”, lembra Zélia, cujo sonho nunca poderia ser concretizado se dependesse das suas parcas economias de costureira aposentada. Mas Tia Zélia é uma das pastoras da Velha Guarda da Mangueira, que no dia 5 de julho inicia sua primeira turnê pela Europa, com 15 shows agendados em um mês.
As apresentações do outro lado do Atlântico são mais um sinal da profissionalização das velhas guardas das escolas de samba cariocas, que mantêm viva a tradição do gênero. Trata-se de uma movimentação com vários indícios. No início do ano, as velhas guardas da Mangueira e da Portela lançaram seus respectivos discos. O da Mangueira, Velha guarda e convidados, conta com as participações de Lenine e Beth Carvalho e já vendeu 20 mil cópias. Tudo azul, da Portela, apadrinhado e produzido por Marisa Monte, contabiliza 35 mil. Quem agora também corre atrás da nova onda é o Salgueiro. No último final de semana, sua velha guarda tocou pela primeira vez num reduto da zona sul carioca, o Vinícius Piano Bar, com as três noites lotadas. E, na terça-feira 6, entrou em estúdio para gravar seu primeiro álbum, em fase de negociação com gravadoras, trazendo a participação de Almir Guineto, como adianta o vice-presidente salgueirense, Nilton Pereira, o Niltinho. “Sempre fomos uma escola muito querida na zona sul. O momento é muito propício para o CD, há uma valorização do samba de raiz”, reconhece ele.

Enquanto a Mangueira arruma as malas, o grupo portelense acaba de voltar de Paris, onde fez dois shows ao lado de Paulinho da Viola e de Dona Ivone Lara. Na platéia, em meio à colônia brasileira, os franceses eram facilmente identificados pela falta de ginga, conta Tia Surica, 59 anos, pastora da escola de Madureira. “Foi tudo lindo, ficava com os olhos cheios d’água por estar levando o nome da Portela tão longe.” Entre um show e outro, Tia Surica e sua turma esnobaram o vinho local e gastaram todos os francos com cerveja. No próximo dia 19, voltam à Europa, desta vez para cantar em Lisboa. E como não poderia deixar de ser, diante da movimentação intensa destes velhos guerreiros do samba, dois projetos de documentários já estão em andamento. O leitor já viu este filme, não? Pois é inevitável fazer associação com a bem-sucedida trajetória dos músicos cubanos de Buena Vista Social Club, documentário de Wim Wenders que tirou Rubén González, Ibrahim Ferrer e cia. do ostracismo ao estourar nos cinemas de todo o mundo.

Os sambistas do Rio de Janeiro foram ao cinema ver os colegas cubanos e se reconheceram na tela. “Eu me identifiquei muito”, diz Quincas, 66 anos, compositor e tocador de cuíca na Mangueira. “A história deles é idêntica à nossa”, completa Tia Zélia, que gostou tanto do filme que o viu duas vezes. Declaradamente inspirado na fita de Wenders, o diretor musical Josimar Monteiro teve a idéia de transformar a turnê da Mangueira num filme. A semelhança entre as trajetórias carioca e cubana será celebrada no show da Áustria, em 30 de julho, quando a velha guarda dividirá o palco com o cubano Compay Segundo. A viagem da Mangueira deve virar documentário pelas mãos do diretor Belisário Franca, que ainda depende dos recursos conseguidos para decidir se fará um longa ou um curta-metragem.

Lula Buarque de Hollanda, da festejada Conspiração Filmes, no segundo semestre também começa a rodar um documentário em longa-metragem com o título provisório de Velha guarda do samba. A idéia inicial era se restringir à Portela, com a qual Lula fez contato por intermédio da cunhada Marisa Monte. “Vimos que tem muita gente do samba pouco conhecida e isso daria um material maior e maravilhoso. É um projeto sedutor”, entusiasma-se Lula, que vai intercalar a parte musical com histórias saborosas dos sambistas. Ele jura que a idéia é anterior à de Buena Vista Social Club, e surgiu quando Marisa começou as pesquisas para o álbum Tudo azul. “É uma coincidência, e os trabalhos são complementares”, garante. Coincidência ou não, pouco importa. Para as velhas guardas a grande sensação é sair dos morros para o mundo.