Muitos homens de jaleco, como são chamados médicos e cientistas, vivem em conflito com os que usam batina. Agora, por causa de um polêmico projeto de lei sobre controle das técnicas de reprodução artificial, eles ganham mais um rival: os de terno, representados por um grupo de senadores. Uma proposta de regulamentação dos processos de fertilização in vitro elaborada pelo senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE) acendeu o pavio dessa briga, condimentada por Roberto Requião (PMDB-PR). No documento, que ainda está em tramitação, existem dois pontos que estão esquentando ânimos de um extremo a outro do “cabo de guerra”: a proibição do congelamento de embriões e a restrição de se implantar e produzir apenas três deles no útero, o que dificulta a ocorrência de gravidez.
O Brasil ainda não dispõe de uma legislação clara sobre o assunto. “É necessária uma lei para controlar as técnicas de reprodução”, afirma o senador Alcântara. O Conselho Federal de Medicina (CFM) já estabelece normas para essas técnicas. Algumas disposições, entretanto, são contrárias às do projeto (leia quadro). A fertilização in vitro consiste em induzir a ovulação na mulher por meio de medicamentos. Os óvulos são retirados e colocados junto com os espermatozóides numa estufa, onde ocorre a fecundação. De acordo com a dosagem do remédio (variável de pessoa para pessoa), é comum a mulher ter, a cada ovulação, cerca de dez óvulos. Em geral, 70% deles estão no ponto para fecundar. São escolhidos os quatro “melhores” para serem implantados no útero. Os restantes são congelados. “Se a mulher desejar, pode engravidar sem precisar passar de novo pelo desgaste do tratamento”, explica Eduardo Motta, ginecologista de São Paulo e especialista em reprodução humana. Caso contrário, o casal pode doar o embrião (óvulo fertilizado pelo espermatozóide). Vale lembrar que esses tratamentos são caros e custam em torno de R$ 6 mil. Manter as células embrionárias nas clínicas, por outro lado, sai por R$ 500 por ano. “Alguns pacientes abandonam o embrião e as clínicas têm de arcar com o prejuízo, já que, segundo as normas do CFM, não é possível descartá-los”, conta Motta.

Proibição – A proposta de Alcântara permite que apenas os gametas – óvulos e espermatozóides – sejam congelados. Dessa forma, o congelamento de embriões ficaria proibido. Essa idéia espanta os médicos, já que o processo pode ser aplicado para a preservação de espermatozóides, mas ainda é uma técnica experimental no caso das células reprodutivas femininas. “Os óvulos são mais sensíveis às técnicas de congelamento. Os embriões apresentam maior sobrevivência a esse processo”, afirma o embriologista José Roberto Alegretti, um dos responsáveis pelo controle do método na Clínica Huntington, em São Paulo.

O projeto de lei encontra respaldo nos dogmas da Igreja Católica, que se baseia na tese de que já há vida assim que o óvulo é fertilizado. “Não somos a favor da reprodução artificial e muito menos do congelamento”, argumenta dom Raimundo Damasceno, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Não é assim que pensa o casal de médicos paulistanos A.A, 31 anos, e J.P, 40, que passaram recentemente pela experiência de preservar embriões. “Não consideramos que são seres humanos congelados, pois achamos que a vida só começa quando eles se fixam no útero”, rebate a paciente.
A outra polêmica diz respeito à produção e à introdução de três embriões e não quatro, como é feito hoje, no corpo da paciente. Isso diminui as chances de gravidez. Os médicos sustentam ainda que é muito difícil produzir apenas três óvulos. Se, por sorte, a mulher conseguir exatamente esses três óvulos (o que pode ser facilitado com uma dose baixa de medicamentos), não há garantias de que todos estarão no ponto para fertilizar. “Há probabilidade de apenas dois deles vingarem”, diz o ginecologista Thomaz Gollop, especialista em medicina fetal, de São Paulo. Assim, o tratamento de pacientes vai levar mais tempo para ter sucesso. “Há erros primários do ponto de vista técnico. Os senadores não escutaram especialistas”, critica o médico. Os homens de terno, entretanto, ponderam que estão levando em conta os riscos que uma gestação de múltiplos pode oferecer às mulheres. “Queremos reduzir as complicações, por exemplo, de uma gravidez de trigêmeos”, justifica Roberto Requião, relator da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ), que já aprovou o projeto de lei.

Por enquanto, não há previsão de quando a proposta entrará na reta final para ser votada no Senado. Ela tem de passar antes por mais algumas fases. No momento, o projeto está sendo avaliado pela Comissão de Assuntos Sociais. Se ele vai virar lei, é outra história. Apesar de todos os entraves, há quem enxergue pontos positivos no projeto. “O empecilho é o congelamento de embriões”, ressalta o ginecologista Antônio Henrique Pedrosa, conselheiro do CFM. Já para o médico Motta, o lado bom da questão é a garantia de os pacientes saberem dos prós e dos contras do tratamento. “O resto pode rasgar e jogar fora”, diz. Gollop é mais radical: “É um atraso para a ciência.” Ou seja, a briga entre os homens de jaleco e os de terno, assessorados pelos de batina, promete render ainda novos capítulos.