“A lei do rio não se cansa nunca de impor-se sobre a vida do homem.
É o império da água… O rio diz para o homem o que ele deve fazer.
E o homem segue a ordem do rio” – Thiago de Mello

Pedro Martinelli, 50 anos, é fotógrafo, cozinheiro e pescador. Ou tudo ao mesmo tempo. Em 30 anos de profissão, ele mergulhou várias vezes no Brasil profundo sob as copas gigantescas das árvores da Amazônia para desvendar um mundo onde cinco milhões de caboclos vivem uma realidade muito distante dos índios coloridos de urucum e das araras reais. Durante cinco anos, Pedrão e seu fiel escudeiro, Almir, percorreram 200 mil quilômetros a bordo do barco Taba. Depois de 1.200 horas de descobrimentos, a viagem virou o livro Amazônia, o povo das águas (Editora Terra Virgem, 263 páginas, 300 fotos), que será lançado no próximo dia 19. Pedrão é uma espécie de historiador. Com seu olho sensível por trás de uma lente, ele registra uma realidade dura, em que dois substantivos pulam das páginas: coragem e mistério. Suas fotos podem ser consideradas um estudo antropológico do Homo amazonicus que vive sob o tapete verde de cinco milhões de quilômetros. “O livro serve para acender uma lâmpada”, diz este filho de italianos de Luca nascido no dia 1º de janeiro de 1950, em plena avenida Paulista. Quem há de entender o que move o homem em sua luta contra o pirarucu (peixe vermelho, em tupi) de 70, 100 quilos? Ou a batalha da plantação da juta sob imensidões alagadas? Ou ainda a incrível saga em busca do pau-rosa, de onde se retira a essência usada desde os anos 20 num dos mais famosos perfumes do mundo, o Chanel Nº 5? Qual bela dona nessas terras ou em além-mar que, ao usar o parfum de madame Coco Chanel, pode imaginar a verdadeira epopéia amazônica por trás de seu simples borrifar?

Foto: Sylvia Monteiro
Pedrão e o capitão Almir rodaram 200 mil quilômetros em cinco anos de aventuras que desembocaram em O povo das águas

A história desses bravos daria um épico de Hollywood dirigido por Francis Ford Coppola com Al Pacino no papel de caboclo. Afinal é ou não uma aventura, um homem passar três meses no mato à procura de um pau de cheiro? Só para derrubar a árvore de 20 metros leva uma hora. Depois ela é cortada em toras de 100 quilos que o mateiro leva nas costas presa por um suporte de cipó, durante uma caminhada de três horas, até a beira de um igarapé, onde o tesouro é transportado em canoas por mais seis horas até as margens do rio Nhamundá. Daí passam para os barcos de motor e navegam mais 30 horas até uma pequena usina em Parintins, onde o pau-rosa é moído e cozido. No final desse processo é extraído o linalol, óleo que é embarcado para a Europa. O litro da essência sai da usina por R$ 15 e do porto de Manaus por R$ 30. O mateiro recebe R$ 300 pela empreitada, mas tem de pagar ao patrão o fumo, a sandália havaiana, a roupa, a comida. O que sobra, ele bebe. Por ano são exportadas 60 toneladas da essência, resultado do corte de seis mil árvores do coração da floresta. Nenhuma é replantada. É esse tipo de história que o livro apresenta através de impressionantes fotos em branco-e-preto. “Do jeito que a gente está cortando a floresta, pondo fogo, tratando os índios, enfim, da maneira como a coisa vai, acho que a Amazônia vira um deserto em 30 anos”, alerta.

Ópera e brega – Além dos bravos locais, o próprio Pedro Martinelli daria um livro. Fotógrafo artesanal, como é definido por Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental de São Gabriel da Cachoeira, parceiro de suas aventuras na selva, Pedrão é autor do histórico registro do primeiro índio gigante da tribo dos kranhacãrore, hoje conhecidos como panarás, contatado pelo homem branco, em 1973. Só nesta primeira imersão, foram quase quatro anos na selva. Depois ele fotografou de tudo, de futebol a concurso de miss, mas sempre voltando ao “inferno verde.” Finalmente, em 1994, resolveu partir para o projeto do livro. Tendo O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, como “guia de viagem” e fitas de ópera gravadas por sua mãe, Albina Antônia, como trilha sonora, lá foi ele. Para completar a cena, o capitão Almir, caboclo amazônico, praticamente nascido na barco Taba, companheiro de todas as centenas de horas. Como uma espécie de Batman e Robin tropical, a dupla se completava. Eles se deram tão bem que, aos poucos, o som da mamma foi sendo substituído por Roberta Miranda, a Princesa do Taba.

Foto: Pedro Martinelli
O índio Caiabi pesca no rio Peixoto de Azevedo, numa foto de 1971

Martinelli pode ser considerado um Sebastião Salgado com o olhar voltado para o Brasil. Suas fotos são cruas, diretas, têm opção preferencial pelo nacional. “Chique e glamouroso é o Brasil. Não aguento mais falar de Nova York e Paris. Aventura é aqui. Não tem sentido ir para a Índia ou a África.” Com seu trabalho, ele quer ajudar a enxergar a Amazônia por outra ótica. “Vamos estudar, vamos ter humildade. Não dá para chamar o menino de lá de criminoso só porque ele come tartaruga”, polemiza. Martinelli lamenta que as universidades do País não tenham interesse em descobrir a imensidão sob o tapete verde. “Quase não há pesquisadores brasileiros por lá, mas encontrei centenas de estrangeiros trabalhando em várias frentes.” Essa preocupação com o País está em todo o trabalho de Pedrão, que já tem engatilhados vários outros projetos tão diferentes quanto um livro de receitas com pratos dedicados aos amigos, o registro de doentes com hanseníase ou uma página na internet (www.pedromartinelli.com.br). O espírito aventureiro só não admite parar em um porto seguro. “Tudo tem um preço e o meu é a solidão.”

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