As águas de março não fecharam o verão deste ano em pelo menos dez Estados brasileiros. E a seca antecipada – as chuvas fortes cessaram em fevereiro, contrariando previsões do tempo e das canções – provocou estragos que tentam ser revertidos a duras penas principalmente pelos governos de locais mais castigados por serem populosos, como a Grande São Paulo, ou com infra-estrutura muito defasada, como Itu, no interior paulista. Não só isso. A situação da capital paulistana, que enfrenta um racionamento inédito, e a decretação de calamidade pública na estância turística, compõem o quadro da pior seca dos últimos 110 anos. O problema, de tão sério, estimulou a discussão das causas de fundo da estiagem, como o desrespeito às leis ambientais, os mecanismos falhos de armazenamento e a falta de vontade política em encontrar soluções. Governantes já estudam formas de cobrar por esse bem de domínio público que começa a faltar em regiões desenvolvidas do País bem diferentes do abandonado Nordeste.

No Brasil, detentor de 15% da água doce de todo o mundo, mas campeão do desperdício, a população paga pela captação, transporte e tratamento. “Para o governo, cobrar também pela própria água, como já é prática em diversos outros países, seria a saída para evitar situações ainda mais sérias”, comenta João Carlos Simanke de Souza, conselheiro da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas. “O dinheiro seria usado na melhora dos sistemas de abastecimento”, promete o secretário estadual de Recursos Hídricos de São Paulo, Antônio Carlos Thame. Está na Assembléia Legislativa um projeto de lei que estipula dois tipos de cobrança: um para quem gasta e outro para quem polui. “O primeiro seria irrisório, R$ 0,01 por litro; o segundo, bem mais caro, para evitar o descaso”, diz o secretário. O Ceará foi o pioneiro na implantação de uma taxa, só para os usuários de açudes. Mas a adoção em outros Estados vem sendo discutida no Senado.

Fazer a população entender que a água é um bem precioso é o centro da questão. Em São Paulo, onde hoje cerca de três milhões de moradores sofrem com o racionamento, cada habitante gasta normalmente 200 litros por dia, segundo a Sabesp. Mas o que São Paulo produz só permitiria fornecer 20 litros por dia por habitante. Um volume bem próximo de Pernambuco, de 13 litros por dia por habitante em algumas regiões. Desde 1960, informa a Sabesp, 53% de toda a água utilizada em São Paulo é importada da Bacia do Piracicaba. “Que também está prestes a secar”, alerta o professor da Faculdade de Agronomia da Universidade de São Paulo, Marcos Sorrentino. Mas a Sabesp não vê problemas no horizonte. “Estamos pensando em explorar a Bacia do Capivari para manter o atendimento”, adianta o gerente de comunicação da companhia, Márcio Riscala.

Tudo isso, na opinião de Sorrentino, só adia o problema da seca, que tende a piorar em todo o País principalmente pela falta de controle das áreas de mananciais e da poluição. “Não adianta eles sugarem a água dos outros. É necessário, sim, mudar a postura, tirar o gado que destrói a mata protetora do rio, não desmatar e não cultivar nas nascentes. A água brasileira tem sido tratada com o desprezo com que se cuida dos esgotos. E desperdiçada, como se não fosse um bem sagrado”, avalia Sorrentino. Pesquisa feita pelo agrônomo mostrou que o morador da periferia de São Paulo não valoriza a água. Na maior parte dos casos o produto é associado a mau cheiro e enchentes.

Deserto – A turística Itu, no interior paulista, acabou virando símbolo da seca. A represa do Itaim mais parece um deserto. “Posso tomar banho na sua casa?”, perguntam jocosamente ao prefeito, Leonel Salvador (PMDB), os moradores irritados com o racionamento diário, das 6h às 22h. “Pode, mas só se for rápido”, responde Salvador. O ambientalista Jorge de Campos, da Associação Mata Ciliar da região de Jundiaí, que engloba Itu, entende a razão das queixas. “Cansamos de falar. A expansão urbana se excedeu, há diversos loteamentos em áreas impróprias. Isso é só o início da crise”, diz, pessimista. “Nos próximos meses, se o quadro não se reverter, outros municípios sofrerão o mesmo.”

O prefeito de Itu discorda e diz que, antes de tudo, a seca é obra do acaso. “Construí dois piscinões para acabar com o velho problema das cheias. É destino.” Agora, Salvador, que racionou até aulas para conter o consumo de água – mais de cinco mil estudantes têm aulas dia sim, dia não – apela para o governo estadual. “Eles nos devem R$ 2 milhões. Não pagam nem admitem a calamidade.” Entretanto, a um quilômetro da represa Itaim, vazia, com capacidade para 30 milhões de litros, foi inaugurado há uma semana um pesque-pague com 42 milhões de litros d’água de encher os olhos, que servem para atrair os turistas, principal fonte de renda do município. “Se pegarmos essa água, os donos nos processam por crime ambiental, pois vamos matar os peixes”, defende-se o prefeito, que interveio em uma propriedade privada e confiscou quatro milhões de litros, na quarta-feira 7.
O cansaço no olhar da faxineira Angela Maria Carvalho, 45 anos, retrata as agruras da estiagem. Como a água só chega na Candelária, onde mora, às 2 da manhã, levanta neste horário para lavar a roupa e a louça atrasada. Dormir de dia, nem pensar. Seu fillho Léo, cinco anos, não vai mais à escola. O mesmo drama é vivido por Arismar da Silva, 40 anos, e seus oito filhos. Baiano, está inconformado. “Na minha terra, Vitória da Conquista, se não tem água, tem coco. Aqui, estamos na mão de Deus.”

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Ninguém ainda sabe onde tanta seca vai terminar. Previsão mais segura de chuvas em São Paulo, só em outubro. O mesmo vale para Mato Grosso, Goiás, oeste de Minas Gerais, sudoeste da Bahia, sul de Tocantins, Rio de Janeiro, Espírito Santo, norte e leste do Paraná e litoral de Santa Catarina, também atingidos. “É só o começo da seca. O clima ainda pode mudar”, aposta, otimista, Prakki Satyamurty, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É a surpresa o que todos esperam.

Em meio ao caos brasileiro, faz sentido o alerta de especialistas internacionais quanto à possibilidade de a água se tornar a mercadoria mais disputada do século. A escassez do produto tem sido combustível de guerras como a do Oriente Médio. E para evitar o pior, em mais de 30 países a água já tem seu preço.


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