Pedro Leite Toscano é pedreiro, como seu xará na música Pedro pedreiro, de Chico Buarque de Hollanda. Nos versos de Chico, o filho de Pedro, depois de uma vida de espera e frustrações, tem como destino final esperar a morte. Mas Juliano, de nove anos, filho do Pedro pedreiro da vida real, já tem um objetivo na vida. “Vou ser um grande bailarino”, promete o garoto. Não se trata de delírio do menino, e sim de realidade. Aluno do segundo ano da Escola Bolshoi do Brasil, em Joinville (SC), o garoto já se comporta como um bailarino profissional e tem planos ambiciosos. “Quando terminar os oito anos de estudo, vou para Moscou fazer teste para o corpo de baile do Bolshoi”, garante. Juliano é um dos 100 garotos com idade entre nove e 12 anos matriculados no Bolshoi para estudar balé. Junto com mais 90 meninas na mesma faixa etária, integra uma verdadeira revolução social e cultural que a filial brasileira da tradicional e respeitada escola russa, com 225 anos de idade, está produzindo em Joinville. “Quando trouxe o Bolshoi, fui muito criticado porque estaria investindo em algo para a elite. E é justamente o contrário, pois 80% dos alunos são da periferia, de famílias de baixa renda. E todos estudam de graça”, afirma o prefeito de Joinville, Luiz Henrique (PMDB).

A realidade confirma as palavras do prefeito. Filho de um operador de caldeira de uma olaria e morador de um dos bairros mais pobres de Joinville, Thiarles Bruzzi, 11 anos, está no primeiro ano do Bolshoi. Em sua escola, a Amador Aguiar, situada na periferia, ele é admirado entre os colegas, que se impressionam com os exercícios que é capaz de fazer. Em uma das chamadas “sessões de motivação” que o staff do Bolshoi faz nas escolas públicas, iniciando o recrutamento de alunos para 2002, ele levou mais de 100 crianças ao delírio fazendo alongamentos de 180 graus no chão e mostrando as posições do balé. “A cada ano, nosso trabalho vai ser facilitado, pois em pouco tempo todas as escolas municipais terão alunos no Bolshoi”, afirma a fisioterapeuta Sylvana Albuquerque, que comandava a apresentação para as crianças. Thiarles, um menino alto, com biotipo considerado perfeito para o balé e que teve todo o apoio dos pais para entrar no Bolshoi, tem certeza de uma coisa: nunca irá trabalhar em uma olaria. “Minha profissão já está escolhida: é o balé”, diz, sorrindo.

Futebol – Para Jô Braska Negrão, responsável, junto com o marido, João Prestes, e o prefeito, Luiz Henrique, pela vinda do Bolshoi para o Brasil, a massificação do balé em Joinville contribui para mudar um velho preconceito, o de que balé seria coisa de homossexual. “Esses meninos, e os outros que serão escolhidos ano a ano, são a melhor forma de combater o preconceito”, afirma. No Bolshoi, é dada ênfase ao lado atlético dos bailarinos homens. A comparação com o futebol é usada com frequência – atletas da bola e atletas da dança – e tem dado resultado. Rodrigo Rubik, 12 anos, aluno do segundo ano do Bolshoi, é uma das estrelas em potencial no balé e também se destaca no futebol. “Claro que o balé melhora o preparo físico. Estou jogando bem futebol. Mas meu futuro é o balé. Espero um dia dançar o Spartacus, meu balé preferido”, afirma com convicção o garoto, um dos poucos de classe média no Bolshoi. Rodrigo conta que, quando entrou para o balé, teve que aguentar muita gozação do irmão de 17 anos e dos primos. “Depois de ver as aulas e perceber que continuo o mesmo, só que mais forte, eles mudaram de idéia e dão a maior força”, diz.

Se os garotos, que além do rigor dos exercícios e da disciplina do balé ainda têm que enfrentar preconceitos, adoram o Bolshoi, o que dizer das meninas. Paola Bucci Leal, de nove anos, aluna do segundo ano, já viveu a experiência de fazer um solo de balé. No começo do ano, ela foi escolhida para dançar um trecho da Morte do cisne com a estrela do Bolshoi Nina Speranskaya, que fez sua despedida dos palcos em Joinville. De família humilde, a menina sempre sonhou com a dança e não tem dúvidas sobre seu futuro. “Vou dançar no Bolshoi em Moscou”, assegura. Amigas inseparáveis, Ruhana Mayara, dez anos, e Rúbia Cristino Quirino, 12, estão no segundo ano, mas já fazem planos para o futuro. Ruhana fez capoeira, quer terminar o curso do Bolshoi e também dar aulas de dança. “Vou ajudar outras pessoas a se desenvolverem no balé e terem uma profissão”, afirma. Rúbia, que tem uma prima professora de balé e aluna do curso de aperfeiçoamento do Bolshoi, pretende ser bailarina e cantora. Na escola, as duas amigas chamam a atenção das colegas. As meninas fazem parte do grupo de 20 negros matriculados no Bolshoi, outra revolução em andamento. “Já devemos ser a escola com maior número de negros no País”, afirma Jô.

Outro recorde positivo alcançado pelo Bolshoi é na quantidade de alunos homens. Existem poucos garotos de oito a 12 anos matriculados em escolas de balé no País. No Bolshoi, já são 100, número que deve ser ampliado para 140, em 2002. No ano seguinte, a intenção é ter 180 alunos homens, bem mais do que os 133 de 16 a 26 anos hoje existentes no Brasil. “Em 2007, quando a primeira turma de alunos estiver concluindo o curso, teremos mais de 300 estudantes homens. O impacto em termos de qualidade e quantidade no balé brasileiro será total”, afirma Jô Braska.

Rigor – Pelo contrato, o ensino no Bolshoi de Joinville tem de ser idêntico ao famoso método da escola russa. Isso pode ser verificado no rigor das aulas, dadas por uma equipe de professores, dos quais seis vieram do Bolshoi – três homens e três mulheres –, entre eles a famosa Alla Mikkalchenko, que por 23 anos foi solista do balé, ou quando se caminha pelos corredores da escola. Meninos e meninas com ar de moleque, impecáveis em seus uniformes, cumprimentam professores e visitantes com a reverência tradicional do balé. Crianças ainda não iniciadas na adolescência repetem, quantas vezes for necessário, os passos ensinados pelos professores, na busca da perfeição. “Sabemos que é difícil para um menino ou menina de dez anos compreender que está fazendo nessa idade a escolha de uma profissão. Por isso, aqui não se ensina apenas a mexer com as pernas e com o corpo. Mexer com a cabeça, dando um preparo intelectual, é fundamental”, afirma Andrei Smirnoff, que foi bailarino e professor no Bolshoi de Moscou e está no Brasil desde maio do ano passado.

Smirnoff e os demais professores homens dão aulas preferencialmente para os garotos. Mas também para as turmas dos cursos de aperfeiçoamento, com bailarinas que tiveram formação em outros cursos no Brasil. Todas as 55 alunas passaram por rigorosos testes e pagam R$ 325 de mensalidade. A maioria mudou de cidade e Estado para fazer o curso. “Foi como recomeçar do zero, apesar de ter 14 anos de balé”, comenta a paranaense Fabíola Schiebelbein, 22 anos. Ela largou a faculdade de educação física no último ano para dançar no Bolshoi e acha que foi a melhor opção de sua vida. Raquel Steglich, gaúcha de 17 anos de idade e 10 de balé, ainda tenta conciliar a faculdade de medicina com as sapatilhas. Mas já decidiu que vai trancar a matrícula em 2002, se for aprovada para o curso profissional. “Acho que o Brasil pode perder uma médica, mas vai ganhar uma boa bailarina”, acredita Raquel.

O currículo não inclui apenas balé. Os alunos têm aulas de música, piano, artes cênicas, história da arte e coreografia, entre outras disciplinas. Os bolsistas precisam ter médias altas em suas escolas para continuar. “Não queremos formar apenas bailarinos, e sim cidadãos completos”, explica Jô Braska. Ao final dos oito anos, os alunos são preparados também para ser coreógrafos, figurinistas, diretor de balé, iluminadores, críticos de arte, pesquisadores, promotores artísticos, produtores, pianistas e professores. O sistema funciona no Bolshoi russo com sucesso. “São 225 anos de experiência que trouxemos para o Brasil”, lembra a supervisora-geral. O orçamento anual do Bolshoi hoje é de R$ 1,8 milhão. Um grupo de patrocinadores banca esses gastos junto com a prefeitura. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, com R$ 1 milhão ao ano, é a principal patrocinadora. Também participam a Antarctica, Petrobras, Rio-Sul e Caixa Econômica Federal. “Quando as empresas perceberem que podem abater do Imposto de Renda 4% para a cultura, nós e muitos outros vamos ter condição de fazer muito mais”, ressalta o diretor financeiro da escola, Sérgio Ayres Filho.

A nova meta do Bolshoi é a construção de uma sede definitiva, com capacidade para mil alunos. O projeto será idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que já recebeu de João Prestes a lista do que é necessário para a escola. Além das instalações para balé e música, a escola terá salas de aula de ensino tradicional, a cargo da prefeitura. Os alunos ficarão no curso em período integral. “Não há nada mais importante do que investir em educação e cultura. O Bolshoi já é uma realidade. No futuro, com o prédio projetado por Niemeyer, teremos a fusão entre a arte da dança e a arte da arquitetura, um patrimônio para as próximas gerações”, orgulha-se o prefeito de Joinville.  

Brasil vence Japão e EUA

Um trio curioso, formado por uma bailarina, seu marido, filho do lendário comunista Luiz Carlos Prestes, e um prefeito discípulo de Ulysses Guimarães. Esta foi a arma decisiva para que Joinville saísse vitoriosa na disputa com outras cidades brasileiras, além dos Estados Unidos e do Japão, pela primeira escola de balé do Teatro Bolshoi fora da Rússia. A bailarina é a brasileira Jô Braska Negrão, que depois de fazer sucesso com dança moderna nos EUA, resolveu fazer o mesmo no Bolshoi, na Rússia. Lá conheceu o marido João Prestes, em 1986. João mudou do Brasil para Moscou em 1970, junto com o pai, então exilado. Tornou-se um empresário no setor de comércio exterior. Em 1995, os dois voltaram para o Brasil, fixando-se em Joinville, onde conheceram Luiz Henrique, na época deputado federal. No ano seguinte, Henrique foi eleito prefeito. Os três trouxeram um grupo de solistas do Bolshoi para se apresentar na cidade. O sucesso foi total. Em 1998, João soube que a direção do Bolshoi pretendia abrir sua primeira escola no Exterior. O casal iniciou uma peregrinação por cidades brasileiras interessadas. “O João me mostrou a proposta. Não tive dúvidas e lhe disse: cancele as conversas com os outros, o negócio está fechado”, recorda Luiz Henrique. Em setembro de 1999, ele assinou em Moscou o contrato com o grupo de balé que tornou Joinville motivo de inveja em todo o mundo. No dia 17 de março de 2000, a Escola do Teatro Bolshoi foi inaugurada.