Na semana passada, foi desmontada a maior rede de abortos clandestinos já descoberta no País. Foram presas 58 pessoas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Espírito Santo, entre as quais seis médicos, nove policiais e dois advogados, membros de uma quadrilha que atuava no Rio. O caso impressiona por vários motivos. Um dos integrantes praticava esse crime há 50 anos, o lucro mensal do grupo era de R$ 300 mil e a quadrilha tinha um organizado modus operandi, composto de agenciadores, seguranças, profissionais de saúde e advogados. Os detalhes são chocantes. Entre os registros, está a realização de um aborto em uma menina de 13 anos e outro em uma grávida de sete meses. Não havia qualquer tipo de medida sanitária, as condições dos locais onde as mulheres se submetiam ao procedimento – muitas vezes, na própria casa do médico – eram insalubres e, talvez por isso, várias terminavam nos atendimentos de emergência nas redes públicas de saúde, que assinalam quase 300 mil procedimentos anuais em consequência de abortos malfeitos. Na casa da inspetora da Polícia Civil Sheila da Silva Pires, por exemplo, a maca ginecológica ficava no quarto ao lado da cama onde ela dormia. Era ali que os médicos faziam abortos, que chegavam a custar R$ 7,5 mil.

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MÉDICOS PRESOS
Acima, Aloísio Guimarães é detido em sua casa no Leblon; abaixo,
Genésio da Silva e seu apartamento, na avenida Atlântica, em Copacabana;
e a médica Ana Maria Barbosa que mora no condomínio Golden Green, na Barra da Tijuca

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A inspetora Sheila estava em liberdade provisória. Em junho de 2013, ela foi pega em flagrante organizando abortos no mesmo endereço onde foi presa, no bairro de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio. A volta à ativa de Sheila, exatamente na mesma casa em que fora detida um ano atrás, é prova da impunidade desses criminosos. O grupo do qual ela fazia parte é responsável pela morte de Jandira dos Santos, 27 anos, assassinada após uma tentativa de aborto em agosto. Com o objetivo de despistar a polícia, a quadrilha deu um tiro na cabeça da jovem para simular um assalto, depois eles removeram sua arcada dentária, deceparam suas mãos e queimaram o corpo para torná-lo irreconhecível. Outro integrante da quadrilha que também usava a própria residência para o crime era o sargento do Exército André Luiz da Silva. Os abortos ocorriam dentro de uma vila militar, na zona norte carioca.

Um dos depoimentos dados por mulheres que estão cooperando com a operação policial descreve o clima do local: “Entrei e senti medo. Eram muitas mulheres deitadas em macas. A casa nem de longe parecia uma clínica”. As gestantes eram encaminhadas às pressas para as “salas de cirurgia”, onde eram dopadas – há registros de médicos alcoolizados e usando linguajar chulo durante as operações. “É uma monstruosidade, é assassinato premeditado. Eles não estão nem um pouco preocupados com a vida da pessoa, só querem o dinheiro”, afirma Fernando Boigues, presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Casas de Saúde do Rio (SINDHRio), para quem é necessária maior diligência dos conselhos nacional e regional de medicina e da Polícia Federal para coibir esses crimes.

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E as somas envolvidas eram altas. O médico Aloísio Soares Guimarães, 88 anos, líder do núcleo de Copacabana, possuía carros de luxo, um imóvel no Leblon, bairro mais caro do Rio, e acumulava R$ 2,8 milhões em uma conta bancária no banco suíço UBS. Guimarães teve sua primeira passagem pela polícia por realização de aborto em 1962. Este será o sexto processo penal ao qual responderá por prática abortiva. Por isso, cabe a pergunta: como conseguiu manter-se impune praticando o mesmo crime durante 50 anos? Ainda na zona nobre carioca, no bairro de Botafogo, morava Evangelista Pereira, o proprietário das clínicas, que está, atualmente, foragido em Miami e é procurado pela Interpol. Em sua casa foram encontrados, dentro de um cofre, R$ 15 mil em espécie, além de joias de ouro e esmeraldas. Já a médica Ana Maria Barbosa, que servia ao núcleo de Guadalupe, na zona norte, morava em uma cobertura de frente para o mar na Barra da Tijuca e mantinha quatro carros na garagem, entre eles uma Mercedes-Benz, comprada recentemente por R$ 212 mil.

A Operação Herodes contou com uma força-tarefa de 70 delegados e 430 agentes de polícia trabalhando juntos por 15 meses para desmontar a rede de clínicas clandestinas no Rio. O sistema criminoso era organizado em sete grupos. De tempos em tempos, os componentes podiam alternar de núcleo, o que dificultou a investigação. Eles variavam também os locais de encontro com as clientes e, uma vez percebendo que muitos de seus telefones haviam sido grampeados, evitavam informar endereços em ligações. O procedimento era feito para confundir tanto a clientela quanto a polícia: um carro buscava até quatro mulheres em diferentes pontos de encontro, rodava pela cidade para que elas perdessem as referências, até chegar a uma das nove sedes. “Os abortos, em torno de dez por dia em cada ponto, eram realizados no início da manhã, a partir das 5h e até, no máximo, 10h para não chamar muito a atenção”, explica o delegado Glaudiston Galeano.

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Uma vez completa a operação e presos todos os 75 acusados, o próximo passo da polícia será uma intervenção direta com os delegados responsáveis pelas áreas onde os crimes ocorreram. “Existe uma hipocrisia muito grande em relação ao aborto. Todo mundo conhece alguém que já foi indicado a ir a um desses lugares. Vamos cobrar explicações dos delegados de cada uma dessas regiões e cobraremos em dobro as delegacias da mulher”, afirma Fernando Veloso, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ele conta que o serviço de inteligência do Rio irá se dispor a trocar experiências com os demais Estados, auxiliando no combate a esse tipo de crime em todo o País. “A polícia encontrou mais de dois mil casos só em parte do Rio. Projete esses números para o Brasil inteiro e pode-se ter a dimensão do problema”, provoca o especialista em reprodução Isaac Yadid. Ele alerta para a importância de a população ser informada sobre os riscos e como se proteger para não precisar desse tipo de intervenção, completando: “Ninguém faz aborto porque é prazeroso, faz por desespero”.

Procurado, o Ministério da Saúde, informou por meio de sua assessoria que o controle de clínicas clandestinas é caso de polícia, não de saúde pública. Para o Conselho Federal de Medicina (CFM), porém, é. “Esse contexto de iniquidade, que tem causado mortes e sequelas, configura um problema de saúde pública que deve ser enfrentado em um amplo debate com a sociedade e com a definição de políticas públicas específicas”, afirmou em nota à ISTOÉ. Segundo o CFM, o aborto é a quinta maior causa de mortalidade materna, podendo ser evitada em mais de 90% dos casos. Quando realizado de forma insegura, representa a terceira maior causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil. Estudo feito com base em dados do Datasus de 1995 a 2007 revela que a curetagem – procedimento necessário quando existem complicações após um aborto – foi a cirurgia mais realizada no SUS no intervalo de tempo avaliado, com 3,1 milhões de registros. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) anunciou que abrirá sindicância para investigar os profissionais acusados. 


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