Imagine que você está dirigindo e seu carro começa a falhar. No painel, acende-se uma luz indicando que é preciso abastecê-lo. Após encher o tanque, o automóvel volta a funcionar. Agora pense na mesma situação acontecendo com o seu corpo. Assim como o veículo, a máquina humana também precisa de combustível para entrar em ação. Se falta gasolina, o organismo sofre as consequências. Nosso combustível é a glicose (açúcar) retirada dos alimentos, que produz a energia necessária para sobrevivermos. Da mesma forma que a gasolina necessita de uma mangueira para ser colocada no tanque, a glicose precisa da insulina, substância fabricada no pâncreas que facilita a entrada do açúcar nas células. Só que para dez milhões de brasileiros, de acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia, esse mecanismo não funciona assim. A falta da insulina ou problemas com sua eficácia atrapalham o processo. Assim surge a diabete, uma doença que atinge atualmente 150 milhões de pessoas no mundo, estima a Federação Internacional de Diabetes. A entidade prevê ainda que o número de diabéticos irá dobrar em 2025.

Os índices assustadores não param por aí. Um levantamento realizado pela federação mostrou que as despesas gastas pelo governo com a enfermidade são altas. Nos Estados Unidos, o custo do tratamento, tanto no setor público quanto no privado, gira em torno de assombrosos US$ 98 bilhões. No Brasil, um estudo feito no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revelou que cuidar da diabete é três vezes mais caro do que tratar doenças cardiovasculares e respiratórias, por exemplo. “Isso porque o tempo de permanência dos pacientes no hospital é maior, devido às complicações decorrentes da doença”, explica o endocrinologista José Egídio de Oliveira, um dos coordenadores do trabalho. A diabete pode provocar sérios prejuízos ao corpo, como infarto, derrame e até cegueira. Sem falar que o mal encurta a vida do paciente em dez anos, em média. “A doença já é considerada um problema de saúde pública”, disse o médico Robert Sherwin, presidente da Associação Americana de Diabetes (ADA), entidade que reuniu em congresso mais de dez mil especialistas do mundo há duas semanas, na Filadélfia, nos Estados Unidos.

Alimentação – Por causa das estatísticas sombrias, a ciência está empenhada em encontrar soluções. Mas de nada adianta esse esforço se a pessoa não recorrer a uma arma decisiva contra a diabete: a mudança do estilo de vida. Isso significa adotar uma dieta saudável e a prática de exercícios. “Vários estudos mostraram que uma alimentação rica em frutas e verduras e meia hora de exercícios diariamente ajudam no controle da diabete”, diz o endocrinologista Adolpho Milech, da UFRJ. Dessa maneira, também é possível manter baixo os níveis de colesterol, triglicérides, pressão arterial e peso, indicadores de risco para a diabete quando estão elevados. “Isso é importante porque 70% dos diabéticos morrem de problemas cardiovasculares ligados a esses fatores”, reforça Oliveira, também da UFRJ.

A medicina está tão preocupada em ajudar os diabéticos a lidar melhor com a doença que o Centro Internacional de Diabete, em Minneapolis (EUA), criou uma dieta mais flexível contagem de carboidratos. A novidade já é adotada por alguns especialistas do Brasil. Trata-se de um método mais flexível. Ele não precisa deixar de comer um doce ou uma bela macarronada, por exemplo. Mas deve saber a quantidade desses alimentos que pode ingerir por dia. Para cada porção ingerida, necessita tomar uma certa quantidade de insulina. A dieta deve ser orientada por um médico. “Ela não incentiva o paciente a comer doce, mas permite gerenciar o uso do açúcar e carboidratos na alimentação”, ensina a endocrinologista Silmara Leite, do Centro de Diabetes de Curitiba.

Crianças – Gerenciar a alimentação nem sempre é fácil. A correria do dia-a-dia muitas vezes faz com que as pessoas prefiram comer um hambúrguer em vez de uma refeição balanceada. Sem falar na falta de tempo para a atividade física. O pior é que as crianças estão seguindo o mesmo caminho. Repare como seus filhos costumam passar horas na frente da televisão, comendo exageradamente sanduíches, batata frita, tomando refrigerante e quase não praticando esportes. Esse quadro contribui para agravar a obesidade na infância. Nos Estados Unidos, já são seis milhões de crianças obesas. O que ninguém sabia é que por causa disso algumas delas já estão tendo diabete do tipo 2 (a mais comum, atingindo 90% dos casos). Vale lembrar que a doença costuma atacar adultos acima de 40 anos. A informação foi divulgada no congresso americano. “É assustador”, confessa o endocrinologista Antônio Chacra, da Universidade Federal de São Paulo. Os americanos também ficaram pasmos com essa novidade e já pensam em diminuir as exageradas porções de comida. Quanto ao Brasil, não há dados. Mesmo assim os especialistas estão alertas. “Os pais precisam ficar atentos à alimentação dos filhos, pois eles podem seguir o mesmo caminho das crianças americanas”, diz Chacra.

Mas o congresso também reservou boas notícias para os especialistas. Foram apresentados estudos de diversas novidades para ajudar os diabéticos a conviver com o problema e a melhorar a qualidade de vida. Os médicos deixaram claro que é importante aliar a alimentação saudável e a prática regular de exercícios aos produtos que serão lançados. “Dessa forma é perfeitamente possível levar uma vida normal”, observa o endocrinologista Rogério Vivaldi, do Rio. A afirmação faz sentido. Já podem desfrutar dos novos benefícios tanto o portador da diabete do tipo 1 quanto a pessoa que tem diabete do tipo 2, as duas modalidades da enfermidade. A diabete do tipo 1 (ou melito) é provocada por uma predisposição genética que leva à destruição das células do pâncreas, responsáveis pela fabricação da insulina. Por conta disso, a pessoa precisa tomar injeções desse hormônio a vida toda. Como se não bastasse, a diabete do tipo 1, que geralmente ocorre na infância, pode ser hereditária.

Uma das novidades apresentadas na conferência é a insulina feita com uma substância chamada glargina, que está sendo testada pelo laboratório Aventis, em São Paulo. O produto, com previsão de chegada para 2002 no Brasil, promete manter constantes as taxas do hormônio no organismo durante 24 horas. Ainda não há certeza se a glargina será eficaz. Se os testes tiverem sucesso, será um grande avanço. Os médicos poderão associar a glargina, que parece ter ação lenta e duradoura, com insulinas de efeito rápido (que agem de 30 minutos a três horas após as refeições). “Isso ajudará no controle mais preciso da doença”, afirma Jorge Gross, endocrinologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Da mesma forma que as outras insulinas, a glargina será aplicada por meio de canetas com uma agulha fina na ponta.

Alternativa – Outro destaque da conferência foi a insulina inalada. Ela está sendo testada pelos laboratórios Aventis e Novo Nordisk. A idéia é substituir as picadas da insulina rápida. “Será uma revolução para o paciente, pois em vez de ele sentir o incômodo da picada, precisará apenas inalar a insulina”, diz a endocrinologista Reine Marie Chaves Fonseca, coordenadora do Centro de Referência para Assistência ao Diabético do Estado da Bahia. Se a pesquisa der certo, há previsões de que a insulina inalada esteja no mercado brasileiro em 2003. Alguns centros brasileiros testam a novidade. Por enquanto, todos os pacientes estão satisfeitos com ela. É o caso do aposentado gaúcho Laércio Vital, 64 anos. Apesar de ser diabético do tipo 2, Vital resolveu participar dos testes, porque demorou muito tempo para se tratar. A única coisa que fazia antes era tomar medicamentos. Recusava-se, por exemplo, a deixar os doces de lado. Suas taxas de glicemia estavam em torno de 300 miligramas por decilitro após as refeições. O normal é menos de 200 mg/dl após a alimentação e abaixo de 126 mg/dl em jejum. Ou seja, as drogas não davam mais conta do recado. Vital demorou tanto tempo para cair na real que seu pâncreas deixou de produzir insulina como deveria. “Isso pode acontecer com o diabético do tipo 2 se ele não se cuidar no início”, alerta Fadlo Fraige Filho, presidente da Federação Nacional de Associações de Diabéticos, em São Paulo. Vital está aliviado, pois teve chance de correr atrás do prejuízo. Ele faz a inalação antes das refeições e agora cuida da dieta. “Hoje meus níveis de açúcar no sangue estão controlados”, conta.

Transplante – Há mais uma experiência que chama a atenção dos especialistas: o transplante de ilhotas de pâncreas, com células produtoras de insulina. Cientistas canadenses já realizaram o transplante em 15 pacientes. Deles, 11 estão há dois anos sem tomar insulina. No Brasil, algumas instituições pretendem adotar essa alternativa, por enquanto recomendada somente para quem está em situação muito crítica. Apenas nesses casos a intervenção compensaria, já que os medicamentos usados para evitar a rejeição das células transplantadas têm fortes efeitos colaterais, como náuseas. Por enquanto, alguns centros que estão na fila para começar os estudos são a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

As pesquisas divulgadas no congresso alimentam a esperança de o diabético ter uma vida melhor. Um grande avanço, já que a doença não tem cura. “É muito frustrante para o pai saber que o filho é diabético e não poder fazer nada”, diz o médico Chacra. A artista plástica Rosane Nogueira, 35 anos, do Rio de Janeiro, notou que a filha, Carolina, 12 anos, reclamava de cansaço e perdia peso. Em março passado, soube que o problema era a diabete do tipo 1. Hoje, Carolina se trata e está bem. “Percebi que posso ter uma vida normal”, diz a garota, nadadora do clube Flamengo.

A história de Carolina mostra que é possível conviver bem com a diabete. Basta manter vigilância constante sobre a doença, já que ela é traiçoeira. Isso porque a enfermidade também pode aparecer por alterações hormonais. Durante a gestação, algumas mulheres sofrem oscilação dos níveis dos hormônios, comum nessa fase, prejudica a entrada da insulina nas células. Daí, ocorre a diabete gestacional. Em casos mais graves, a grávida precisa tomar insulina. A diabete mais branda pode ser controlada apenas com uma dieta com menos açúcar. Essa foi a estratégia usada pela dona-de-casa Valdenice Gomes, 31 anos, de Fortaleza, que desenvolveu a diabete gestacional em 1993. Na época, consegue controlar o problema. Parecia estar bem. Em março passado, no entanto, Valdenice descobriu que tinha adquirido diabete e retomou a dieta dos tempos de gravidez. A médica Adriana Forti, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, explica que talvez o organismo da gestante tenha desenvolvido uma resistência permanente à insulina.

Disciplina – Valdenice pertence ao grupo dos diabéticos do tipo 2. As últimas novidades, apresentadas no congresso americano, foram drogas, como a sulfoniluréia (que estimula o pâncreas a secretar mais insulina). Tanto para controlar o tipo 2 quanto o tipo 1, é fundamental ter disciplina. “A maioria dos diabéticos não segue à risca as recomendações médicas”, garante o endocrinologista Fraige Filho. O consultor de informática Júlio Vigoroti, 44 anos, é uma dessas pessoas. Ele descobriu há 12 anos que sofre de diabete do tipo 2. Demorou muito tempo para começar o tratamento, até que teve uma crise de hiperglicemia (excesso de açúcar no sangue) e passou mal. “Reconheci que tenho um problema sério”, lembra-se. Hoje, ele pratica basquete, se alimenta bem e toma medicamentos. Além disso, Vigoroti passou a ler tudo que aparecia na sua frente sobre diabete, inclusive material capturado na internet. “Atualmente, não estou preocupado com os índices da Bolsa de Valores, mas com as taxas de açúcar no meu sangue”, brinca.

Checar os níveis de glicose na circulação sanguínea deveria ser uma preocupação de todos. Para os especialistas, a falta de diagnóstico é um dos principais problemas relacionados à doença, principalmente a do tipo 2. “Como os sintomas só aparecem muito mais tarde e geralmente são vagos, como o cansaço, por exemplo, as pessoas nem desconfiam”, afirma Fraige, da Federação Nacional de Associações de Diabéticos. Por causa disso, o Ministério da Saúde lançou em março uma campanha de diagnóstico, com apoio da Sociedade Brasileira de Endocrinologia (SBE). Na semana passada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou os primeiros medicamentos genéricos para combater a doença. Eles devem ser comercializados a partir de agosto. Junto com a SBE, o Ministério criou um programa de capacitação médica para clínicos-gerais, nos moldes do que já acontece em alguns centros especializados (leia o quadro). “Isso é importante porque parte dos clínicos ainda não sabe lidar com o problema e não pede exames”, afirma o endocrinologista José Egídio Oliveira. Essa medida ajuda a evitar que o paciente só descubra a doença quando o seu organismo não está funcionando direito. Se o problema for diagnosticado logo e a pessoa seguir direitinho as recomendações médicas, as chances de boa convivência com a doença serão maiores. O nadador americano Gary Hall, 25 anos, é um exemplo disso. Portador do diabete do tipo 1, ele conseguiu se destacar no esporte. “A diabete não me atrapalha. Pelo contrário, ela me deixou mais atento à alimentação, aos exercícios e ao meu estilo de vida”, disse a ISTOÉ. Trata-se de uma vitória, mais valiosa até do que o bronze que conquistou nos Jogos de Sidney, em 2000.

Produção: Maria Fernandes; Modelos: Marcella Danielle da Costa Santos (Ag. Art Bambini), Adriana Portasio e Victor Patrich Blecker (Ag. Flash Book); Maquiagem: JRO Santos; Agradecimentos: Bar Lucena do Grupo Bovinus, Omino, Hering, World Tenis

Iniciativa Pública

Centros públicos de atendimento a pacientes carentes começam a se difundir no Brasil. A primeira cidade a implantar o serviço foi Fortaleza. Em 1988, a endocrinologista Adriana Forti arregaçou as mangas e convenceu o governo a criar o Centro de Diabetes e Hipertensão. No local, os diabéticos têm a orientação de nutricionistas e oftalmologistas, entre outros profissionais. Salvador adotou o mesmo projeto em 1994. Os dois centros oferecem cursos de aprimoramento para clínicos-gerais. “Só assim conseguimos garantir a assistência a um número maior de pessoas”, diz a coordenadora do programa Reine Marie Fonseca. O próximo centro será montado até 2002, em Porto Alegre, para cuidar de crianças com a doença. “O objetivo é educar pais e filhos”, informa o médico Balduíno Tschiedel, futuro diretor da casa.