Aos 76 anos, o advogado que lutou contra a ditaduratraça um quadro pessimista do País e diz que a reeleiçãode FHC foi uma violência

Mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras, o advogado Raymundo Faoro, 76 anos, tinha a expectativa de que, após duas décadas de democracia, o Brasil se tornasse um país politicamente estável. Mas o sentimento que tem, atualmente, é de decepção com os homens públicos sem talento para o exercício da política de alto nível. Faltam, segundo ele, homens como Juscelino Kubitschek, Petrônio Portella, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Com a ressalva de que não está aderindo ao pessimismo, faz uma reflexão sobre a crise do Estado brasileiro: “Vejo a situação do Brasil com muita apreensão, porque não se sabe até onde resiste este governo conservador, que deu continuidade ao programa de Fernando Collor.” Faoro acredita que o Estado brasileiro foi desmantelado e que, no plano global, o Brasil nem sequer se tornou um parceiro confiável do sistema financeiro internacional: “Em verdade, ele é, neste governo, uma espécie de penetra da festa dos que ficam mais poderosos com a globalização.” O advogado, que lutou pelo restabelecimento do habeas-corpus e o fim da tortura, nos anos de chumbo do regime militar, pelas diretas-já, em 1984, pela candidatura de Tancredo Neves e pela Assembléia Nacional Constituinte, afirma nesta entrevista a ISTOÉ que “as reformas políticas não saem do papel porque as elites políticas estão preocupadas em manter seus privilégios”.

ISTOÉ

Como deverá ser analisado historicamente
o governo FHC?

Raymundo Faoro

O mérito dele foi o de pacificar o País. Seu governo contribuiu para que os ressentimentos fossem deixados de lado, atendeu aos reclamos dos direitos humanos. Hoje não há mais aquela amargura do passado. Além de reconhecer a responsabilidade do Estado sobre as violências da repressão dos anos 70, permitiu que fossem fornecidos atestados de óbito. Fez concessões muito difíceis. Este é o lado positivo do governo dele. O negativo foi embarcar em um sistema de mercado quase com cegueira. Junte-se a isso o fato de não ter um projeto para o Brasil. Falou em desmontar o getulismo, que era um projeto intervencionista, mas nem sequer o fez.

ISTOÉ

O Brasil não conseguiu tornar-se um parceiro reconhecido no sistema financeiro internacional?

Raymundo Faoro

 Não. O País foi e ainda é visto como uma espécie de intruso, de penetra da festa da globalização, que é das potências. O Brasil não conseguiu ser tratado com respeito no plano internacional e se tornou ainda mais vulnerável às crises internacionais.

ISTOÉ

O sr. costuma ser crítico do modelo econômico adotado no Brasil. O que há de errado?

Raymundo Faoro

 Toda a Europa está fazendo correções e nós deveríamos fazer também. O modelo neoliberal e o da globalização costumam ser apresentados como irreversíveis. Mas o que não é irreversível é o controle da Nação. Quem está regulando hoje a entrada e saída de capitais no Brasil? Ninguém. A situação é tão evidentemente espantosa neste processo da globalização, tão excludente que o próprio investidor George Soros escreveu um livro sobre o assunto. Até ele. Passa como denunciante do modelo que dizem que o enriqueceu. O Soros crítico do Fernando Henrique. É possível? O fenômeno do fortalecimento da plutocracia no governo se acelerou com o novo modelo econômico que aposta no mercado. É uma plutocracia que nem mais nacional é. Economicamente, o Brasil é governado de fora. O Banco Central vai buscar apoio no FMI. A Argentina faz a mesma coisa.

ISTOÉ

O que pode ser feito?

Raymundo Faoro

Não existe um projeto nacional. Tudo foi entregue à iniciativa privada. Quando se abriu, não se pensou nos brasileiros que não tinham poder aquisitivo, que não tinham condições de se inserir neste processo. Ele seria, então, para o estrangeiro, e com o auxílio do BNDES. Até laboratórios para exames clínicos são estrangeiros. O Estado no Brasil está desmantelado. Ele precisa ser reconstruído para cuidar da geração de energia, tecnologia, garantir saúde e educação.

ISTOÉ

O sr. afirma que o mercado já regula a soberania?

Raymundo Faoro

 A soberania já é tida pelos globalistas como uma mentira. Para eles não há soberania nenhuma, e o mais grave é que a globalização anula a cidadania e o Estado, de certa maneira. O Estado no sentido desta fusão da sociedade civil com a autoridade pública. E, com esta anulação, a soberania o que é? Fala-se na interdependência entre os países. Na verdade, isso é uma falácia. O que existe é exatamente uma dependência dos fracos pelos fortes.

ISTOÉ

Além do modelo econômico, onde mais o governo FHC erra?

Raymundo Faoro

 O governo usou e abusou das medidas provisórias, por exemplo. A Constituição permite que estas sejam adotadas em casos de urgência, casos extremos, mas foram banalizadas. Há MPs para tudo. Até para pesos e medidas. E com elas entra-se em um círculo vicioso. O Congresso não trabalha porque o Executivo legisla e o Executivo legisla e alega que o Congresso não trabalha. Então, acaba-se anulando o Congresso. Uma miniconstituinte sofreria do mesmo defeito da Constituinte de 1988 e de 1945. Como esse grupo vai ser o mesmo que vai votar? Como esse grupo vai alterar aquilo que o beneficia?

ISTOÉ

Qual o perigo na utilização excessiva de MPs?

Raymundo Faoro

 Vejo isso com muita apreensão, porque não se sabe até onde vai este governo. Até onde ele resiste e qual a perspectiva de outro governo. Há uma instabilidade e uma imprevisibilidade que não são próprias da democracia. A democracia é um regime previsível, em que os partidos, de certa maneira, prevêem as situações. Aqui os presidentes sempre foram surpresas.

ISTOÉ

As instituições democráticas já estão consolidadas?

Raymundo Faoro

Não estão consolidadas, mas é mais difícil rompê-las hoje do que antigamente. E também acredito que a crise do Brasil, como a crise da América do Sul, é uma crise do Estado. Nenhum país sul-americano achou o Estado que a sociedade esperava e espera. O Estado, neste antigo ciclo conservador que está aí, não se adaptou ao surgimento da cidadania. O próprio México enfrenta uma crise de Estado. E o Brasil teve tantas Constituições. O que significa

ISTOÉ

Qual a sua opinião sobre a reeleição?
.

Raymundo Faoro

A reeleição foi mais do que um erro. Foi um absurdo. Creio que, se Fernando Henrique tem consciência das coisas, e acho que ele tem, está absolutamente arrependido. A reeleição foi uma violência conseguida por todos os meios, inclusive meios não apurados e que deviam ser apurados. Houve denúncias de tráfico de dinheiro

ISTOÉ

E quanto aos demais casos de corrupção?

Raymundo Faoro

 Diante de tantos escândalos, Fernando Henrique saiu-se com uma coisa grotesca, que foi colocar uma ministra contra a corrupção subordinada ao Executivo. Se ela devia ser uma fiscal contra a corrupção, uma ombudswoman, teria de ser independente. As denúncias são preocupantes, sobretudo na área política. As eleições ficaram muito caras. Já eram caras. De onde o candidato vai tirar dinheiro? Mesmo com todas as cautelas, inclusive a de verbas do orçamento para campanha, ainda sobra um espaço muito grande para a corrupção, para o aliciamento econômico.

ISTOÉ

O sr. é contra a reeleição em todos os casos?

Raymundo Faoro

 O melhor seria não adotá-la. Oito anos é demais. No caso de Fernando Henrique, são oito anos do mesmíssimo grupo no poder. Quer dizer: um regime elitista e ainda sem circulação de elites. Quase como o governo militar, que se exauriu porque não tinha mais reservas no meio de seus homens de confiança. O grupo do Fernando Henrique é o mesmo, salvo os que morreram.

ISTOÉ

No Brasil há alternância do poder?

Raymundo Faoro

 São sempre os conservadores que chegam ao poder. O próprio Collor surgiu em uma plataforma demagógica, apelando mais para o ressentimento do que para qualquer reforma social. Foi o mais conservador de todos, com o desmantelamento do Estado, que, aliás, Fernando Henrique deu continuidade.

ISTOÉ

No Brasil há alternância do poder?

Raymundo Faoro

 São sempre os conservadores que chegam ao poder. O próprio Collor surgiu em uma plataforma demagógica, apelando mais para o ressentimento do que para qualquer reforma social. Foi o mais conservador de todos, com o desmantelamento do Estado, que, aliás, Fernando Henrique deu continuidade.

ISTOÉ

O sr. teme que o Brasil chegue à ingovernabilidade?

Raymundo Faoro

Sempre que ouço falar nesta palavra tenho desconfiança. Ela é muito usada por setores que criam a impressão de que pretendem apoiar o governo para evitar sua queda. Mas, para que se mantenha, é claro que isso tem um preço. Mas não vejo governabilidade há uns três anos. Governava o Antônio Carlos aliado ao Jader (Barbalho). Uma oligarquia interna. Afastados estes elementos – um porque está sendo alijado –, o governo ficou exposto a ele próprio. Acho que deixou de fazer as reformas que tinham de ser feitas: a fiscal, a política, a social. Adiou quando não tinha mais poder para fazer. Caiu em uma esparrela conservadora que o sociólogo mais medíocre da França não cairia. Foi fazer o jogo conservador.

ISTOÉ

O governo é conservador?

Raymundo Faoro

 Fernando Henrique foi uma surpresa dentro dos partidos. E, infelizmente, deixou-se vencer pela ala mais conservadora desse bloco, que inviabilizou o governo dele. O programa do FHC é o mesmo de Collor. Ele deu continuidade. O projeto não é diferente.

ISTOÉ

Por que a reforma política não sai?

Raymundo Faoro

 Porque, se as regras do jogo político mudarem, eles serão prejudicados, alguns podem ir para um plano secundário. Como mudar? Os partidos não são representativos.

ISTOÉ

Como o sr. avalia a hipótese de o PT chegar ao poder?

Raymundo Faoro

Acho até que vai dar um sopro, uma renovação e uma nova expectativa. Mas o que eu temo um pouco não é a chegada do Lula ou do PT à Presidência, mas, sim, as disputas internas do PT, que podem criar muitas dificuldades para o governo. Pode ser um governo conflituoso até as coisas se assentarem.

ISTOÉ

Como o sr. vê os governos petistas no Sul?
Fa

Raymundo Faoro

 O Olívio (Dutra) é um pessoa de muita categoria, mas encontrou o Estado com muita dificuldade. Se ele recuperar o Rio Grande, o que não é fácil, vai ser uma grande bandeira para o PT e será indicado como exemplo de que o partido é viável. O Partido dos Trabalhadores não quer trazer o Lênin de volta. Quer dar uma ênfase maior ao social. Hoje, se você precisa de um hospital público, tem de esperar dez horas, e, além disso, quantas crianças não chegam ao segundo grau? Onde há escola para todas as crianças?

ISTOÉ

Como a oposição chegará à eleição de 2002?

Raymundo Faoro

 Deve chegar desunida. Acontece que às vezes a oposição não é oposição, mas, sim, um desejo, uma tal de “saia daí para que eu entre”. O PMDB será esta oposição? Qual é o seu projeto? Qual o projeto do Ciro Gomes? O Itamar é nacionalista e pode ser mais compatível. E a chamada esquerda? Tem o PT, o PCdoB e uma esquerda difusa.

ISTOÉ

Que legados a ditadura militar deixou para os políticos?
F

Raymundo Faoro

Um dos maiores males que a ditadura causou foi acabar com a tradição política do homem que sabia fazer política. Fernando Henrique passa pelo tapete do Palácio do Planalto com medo de escorregar. Já o Tancredo (Neves), Petrônio (Portela) entraram naquilo como se fosse a casa deles. Será que Petrônio, Tancredo ou Ulysses (Guimarães) cometeriam as inconfidências que Antônio Carlos Magalhães, outro amador ou fraco em alta política, cometeu?

ISTOÉ

A que conclusão o sr. chega sobre o episódio envolvendo ACM?
.

Raymundo Faoro

 ACM atuava na faixa autoritária. Ele deu a impressão ao governo que mandava mais do que realmente mandava e dava a impressão a seus companheiros que tinha um poder maior do que realmente tinha. Mas foi lamentável neste episódio da quebra do decoro. E nunca foi eleito com a bola tão cheia. O Lula, candidato à Presidência, ganhou em Salvador

ISTOÉ

E o Judiciário?

Raymundo Faoro

O Judiciário precisa de uma reforma. Este é um país que não tem juízes. Um juiz com dez mil causas não tem nenhuma. Já tive experiência disso. O juiz pertence a uma classe das mais sacrificadas. Em geral, chega na hora certa, sai depois do expediente e leva trabalho para casa. A Justiça do Trabalho é um desastre. A Alemanha, com um terço da população do Brasil, tem seis vezes mais juízes. É preciso que as atividades do Judiciário sejam racionalizadas e com fiscalização maior sobre os juízes e com reciclagem.

ISTOÉ

O sr. é a favor da pena de morte?

Raymundo Faoro

Não. Além dos erros judiciários clamorosos ocorridos nos Estados Unidos. Mas não pela possibilidade de erro. Já está provado que a pena de morte não inibe a prática do crime. Os índices de criminalidade entre os Estados americanos com pena de morte e sem a pena fatal não são diferentes. Trinta anos é suficiente, e as penas têm de ser cumpridas. E a prisão especial deve ser garantida a todos os cidadãos, tendo ou não curso superior, enquanto não condenado. Com a presunção de inocência, o cidadão não pode ficar em uma cela com 20 ou 30 homens.