Não é só ao sul do Equador que as privatizações deram margem a operações duvidosas, prejudicando interesses de acionistas minoritários e possivelmente também do Estado. Em outubro de 1997, o governo italiano colocou no mercado os 62% de ações que detinha da sua operadora estatal, a Telecom Italia (antiga Stet), por US$ 12 bilhões, ficando com apenas 3,4%. A divisão Seat, responsável pelas listas e guias telefônicos, foi privatizada no mês seguinte, passando, por cerca de US$ 1 bilhão, a ser controlada por uma sociedade chamada Huit, com sede no paraíso fiscal de Luxemburgo. Com a dispersão do capital entre inúmeros acionistas, a Telecom Italia deixou, por algum tempo, de ter um controlador forte e continuou independente e administrada pela direção herdada do período estatal. Em fevereiro de 1999, porém, o grupo Olivetti, quatro vezes menor que a ex-estatal, fez uma oferta hostil – isto é, contra a vontade da direção da empresa – aos detentores das ações da ex-estatal, prometendo pagar US$ 65 bilhões por 100% do seu capital. Por 52% do capital da Telecom Italia, a Olivetti pagou US$ 33 bilhões, financiados por um consórcio de 24 bancos liderados pelo Chase Manhattan. A gestão passou às mãos dos executivos Roberto Colaninno e Emilio Gnutti, que anunciaram em seguida um enxugamento de 20 mil funcionários.

A Olivetti tornou-se o segundo maior grupo italiano de comunicação, o que a coalizão de centro-esquerda, então no governo, via com bons olhos: isso deveria incentivar a concorrência no setor e enfraquecer a esmagadora hegemonia na tevê e na imprensa do império MediaSet, de Silvio Berlusconi (atual primeiro-ministro), que detém 42% de audiência entre os italianos.

Em fevereiro de 2000 – auge da especulação com a “nova economia” –, o grupo Olivetti comprou 58% do capital da Seat, pagando US$ 6 bilhões à Huit, e fundiu a essa empresa a controlada ponto.com da Telecom Italia, a Tin.it, o que reuniu a infra-estrutura da companhia telefônica e seus assinantes à publicidade e à imensa base de dados da Seat, consolidando o maior portal internet da Itália. Em abril, ampliou também sua participação na sua controlada de telefonia celular, a TIM, comprando em Bolsa 50 milhões de ações por cerca de US$ 600 milhões –, mas a operação só foi comunicada aos sócios minoritários quatro meses depois.

O aumento do endividamento do grupo, porém, começava a prejudicar os resultados, e os investimentos em telefonia celular e internet se desvalorizaram fortemente com a crise da nova economia: em 2000 a Olivetti teve uma perda consolidada de US$ 800 milhões, em parte devido à desvalorização em 50% das ações da TIM – reconhecida apenas em parte. A controladora Bell recebeu dividendos (cerca de US$ 33 milhões) bem abaixo da despesa financeira (cerca de US$ 90 milhões), enquanto seus investimentos se desvalorizavam em US$ 400 milhões.

No final de maio de 2001, com Berlusconi vitorioso nas urnas e já pronto para tomar posse não só do cargo de primeiro-ministro como também da rede de tevê pública RAI (mais 48% de audiência), um dos últimos atos da coalizão derrotada foi aprovar a aquisição pela Seat do controle da Telemontecarlo (que entre 1985 e 1994 pertenceu à Globo), esperando criar alguma possibilidade de concorrência na tevê italiana.

Pouco antes, porém, dois representantes dos acionistas minoritários abandonaram o conselho da Telecom Italia, cujas ações haviam se desvalorizado 46% nos últimos doze meses (valem hoje US$ 13,6 bilhões), protestando contra a falta de transparência na gestão, e o jornal Corriere della Sera trouxe a público um fato muito embaraçoso para Colanninno e Gnutti: ambos fizeram a Telecom Italia comprar a Seat em parte deles mesmos – exatamente quando seu preço estava no auge, às vésperas da crise da nova economia. Foram pagos cerca de US$ 4,50 por ação, cujo preço em 30 de maio de 2001 havia caído para US$ 0,80.

Mutreta A Telecom não informou, no prospecto informativo da operação, que a Hopa – que é controlada por ambos e controla o grupo Olivetti através da Bell – era também acionista da Seat, por meio de uma participação num fundo fechado chamado Investitori Associati Gestão & Serviços, estabelecido no paraíso fiscal da Ilha da Madeira. Nem que o presidente da Seat, Lorenzo Pellicioli, estava embolsando uma comissão de US$ 88 milhões pela transação.

A bem da verdade, quando o conselho da Telecom Italia se reuniu para aprovar a compra da Seat, Colaninno e Gnutti mencionaram que poderia haver um “pequeno” conflito de interesse e por isso se absteriam de votar. Só um ano depois, porém, os sócios vieram a saber a real dimensão do “pequeno”: um ganho de US$ 325 milhões para a Investitori Associati, que reverteu em cerca de US$ 120 milhões para a Hopa.

Colaninno insiste que o conflito de interesses é “teórico” e que é “ridículo” pensar que uma transação de bilhões de dólares poderia ter sido feita só para que ele pudesse embolsar US$ 8 milhões (seu ganho através da Hopa enquanto pessoa física). Mas essa não é toda a questão. Os sócios da Hopa na Investitori Associati incluem outros fundos fechados em paraísos fiscais onde ele e seus sócios podem ter participação. E ninguém sabe de quem eram as ações da TIM que a Telecom Italia comprou em Bolsa por US$ 600 milhões – não seriam dos próprios Colaninno e Gnutti, através de intermediários?

E, o que talvez seja o mais importante, foi graças ao “pequeno” ganho que a Hopa deixou de apresentar um prejuízo da ordem de US$ 20 milhões, que teria enfraquecido sua capacidade financeira a ponto de ameaçar o controle de Colannino e sócios sobre todo o grupo Olivetti.

Minoritários chiam – “Colaninno tem usado a Telecom Italia como um ativo que não rende tanto para os acionistas quanto para ele próprio”, disse Richar Neill, gerente de um fundo de investimentos que possui ações da Telecom Italia. Os minoritários também questionam a contabilização, sempre em seu prejuízo, de outras participações adquiridas a peso de ouro e que depois se desvalorizaram fortemente – incluindo a italiana Tin.it, a francesa Jet Multimedia e a brasileira Globo.com, onde foram despejados US$ 810 milhões por 30% de um capital que depois perdeu 80% do seu valor.

E entre os minoritários da Olivetti encontra-se hoje nada menos que a MediaSet, que adquiriu 1% de suas ações e, aproveitando-se da fraqueza de Colaninno, quer agora discutir a estratégia de seu grupo e da Telecom Italia. É cada vez mais forte a pressão para que Colannino entregue parte do poder a um executivo de fora, antes que o grupo se torne mais um refém do império Berlusconi. 

Rusgas com os parceiros brasileiros

Parceiros da Telecom Italia no Brasil também têm queixas sobre a forma como os controladores do grupo gerenciam seus negócios: o grupo Opportunity, sócio da Telecom Italia na Brasil Telecom (BrT, operadora de telefonia no Sul e Centro-Oeste), não se conformou com sua sócia, que não só tentou aumentar a oferta à Telefonica pela CRT de US$ 730 milhões para US$ 850 milhões – assinando um contrato (depois invalidado pela Anatel) com a empresa espanhola na Itália sem ouvir o sócio brasileiro –, como chegou a ameaçar não assinar operação de R$ 700 milhões em debêntures contratadas com o BNDES caso seu ponto de vista não prevalecesse, gerando um impasse que durou meses. Só em 14 de julho de 2000, depois de a Anatel intervir na CRT e ameaçar extinguir a concessão da Telefonica, a transação acabou sendo realizada, ao preço proposto pelo Opportunity. Mas o conflito não acabou aí: em seguida, o Opportunity acusou o sócio italiano de inviabilizar a participação da BrT nos leilões das bandas D e E com exigências inaceitáveis, para que a Telecom Italia pudesse participar individualmente e arrematar licenças nas três áreas do País. Agora, o Opportunity ameaça não antecipar para este ano o cumprimento das metas de universalização previstas para dezembro de 2003, o que faria a Telecom Italia perder o direito a essas concessões.

“A tradicional presença e as estratégias de penetração da Telecom Italia na América do Sul foram violentadas por Colaninno quando ele decidiu entrar em guerra com seus sócios brasileiros”, disse a ISTOÉ David Giacoloni, ex-conselheiro do Ministério das Comunicações da Itália de 1987 a 1991. “No sentido figurado, o médico não o aconselhou a fazer uma sociedade com o Opportunity, mas certamente teria desaconselhado a brigar com os sócios.” Segundo ele, o negócio com a Globo.com foi uma absoluta loucura. “Se a participação adquirida na Globo.com foi devida a uma empolgação momentânea da nova economia, isso foi um erro de gerenciamento. Se foi outra coisa não sou eu quem pode responder. Certamente o preço pago por 30% foi desproporcional.” Giacoloni diz não ter motivos para duvidar que, do ponto de vista formal, “a posição de Colaninno e Gnutti é correta”. “Mas”, acrescenta, “em relação à substância, o mercado olha hoje Colaninno como um senhor que faz os seus próprios negócios com a Telecom e isso não transmite confiança”, diz o ex-conselheiro.

Colaborou Gianna Rosetti, de Roma