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Sobrevivente do desabamento de terra na Ilha Grande, Flávio Larini perdeu a noiva na tragédia

"Acordei no mar, misturado no meio da lama que virou por causa da quantidade de terra que caiu. Tive dificuldade para emergir com um peso em cima. Provavelmente era lama. Nadei de volta e fui levado ao mesmo tempo pelo mar para a praia. A princípio achei que era alguma coisa vinda do mar, uma onda gigante. Quando voltei para terra firme encontrei a Eny (amiga de Flávio e sobrevivente). Mas ainda estávamos um pouco no mar também, tinha água, não dá para ter certeza de onde era. Comecei a pedir calma para ela, que perguntava o que estava acontecendo. Falei para ela segurar que vinha outra onda. Comecei a escalar nos galhos das árvores. Cheguei a uma pedra. Nesse momento o Gerson apareceu, também perguntando o que tinha acontecido. Só lembro da voz deles. Não conseguia enxergar. Tinha muita chuva. Estava muito escuro. Tudo o que fiz foi instinto de sobrevivência. Procurei me abrigar e comecei a conversar com a Eny.
Pedi calma para todo mundo, achando que estavam todos por perto, que era primeiro para socorrer as crianças. Percebi que não tinha ninguém mais quando ouvi um grito de socorro que vinha de muito longe, provavelmente da pousada. Achei que tinha batido uma onda grande, um barco, mas não que tinha desabado terra em cima da nossa casa. Achei que se eu estava vivo todo mundo estaria.
Quando cheguei na pedra tirei a bermuda que estava muito pesada de água e lama. Fiquei só de cueca. Ali, comecei a respirar fundo, tentar me acalmar. Rezamos juntos. Quando percebi que ninguém respondia entendi que era uma fatalidade, uma tragédia. Olhei para cima e vi que não tinha mais aquela mata que eu olhava sempre. Senti que a possibilidade de sobreviventes era pequena. Chego a me arrepiar. Fiquei em choque. Só consegui voltar para olhar o lugar por volta das 10 horas da manhã. Eu acho que o resgate não demorou 20 minutos. A Eny acha que demorou quase uma hora. A gente viu dois homens com lanternas perguntando se alguém estava ali. Gritamos socorro e nos viram. Pessoas de uma outra pousada nos abrigaram. Tomamos banho, nos deram roupa, emprestaram celular para ligarmos para nossas famílias. Nessa noite, eu dormia com a Manu na parte de baixo do beliche. Em cima, estava o Luiz. Na cama de solteiro ao lado estava a Fernanda. Noivamos em novembro. Quem não estava já casado tinha planos de casar logo. Vou ao hospital duas vezes por dia para trocar os curativos. Tenho escoriações e uma inflamação em um ferimento no braço direito. Eu nem tinha noção de quanto tinha me machucado lá na hora. Estar aqui é milagre. Caiu uma montanha em cima da nossa cabeça. Atrás da casa tinha uma cachoeira bem forte. Mas não vi sinal de que algo poderia acontecer. Tinha uma praia ao lado que estava já com várias pedras que rolavam do morro, mas achei que era natural. Dia 31 de manhã não tinha mais areia da praia. As pedras encobriam tudo. O dia todo choveu muito.
Acordei todo mundo cedo mesmo assim para a gente se divertir. Todo mundo ajudou a limpar a casa e deixar tudo preparado para a ceia. A luz acabou às 10 horas da manhã e voltou 11 horas da noite. Fizemos luminárias com garrafas pet, espalhamos por toda varanda, na cozinha. Nos divertimos mesmo com chuva. Eu olhava muito aquela parte da mata que acabou desmoronando. Era um sentimento estranho, mas não imaginava que cairia. Agora, parando para pensar, parece que eu estava pressentindo mesmo. Não consigo dormir. Me mexo a noite toda porque estou com o corpo dolorido demais. Também sempre dormia com a Manu no meu quarto, tem várias fotos dela lá. Fecho o olho vem lembrança. O escuro da noite me faz voltar para aquela hora. Minha mãe está fazendo litros de chá de camomila. Mas sei que vou ter que começar logo uma terapia. Não quero conseqüências ainda mais sérias para minha saúde. Vou superar, mas esquecer não vou esquecer nunca. Marcou para sempre minha vida. Quero agradecer aos coronéis Valdinei e Bonfim, que se empenharam nas buscas pelos corpos da Manu e da Fernanda. As famílias precisavam enterrar os corpos. Minha despedida com ela foi no dia 31, na virada. Com meus amigos também. Vou guardar essa lembrança de alegria deles vivos. Todo mundo estava feliz. Lembro do sorriso de cada um na hora do abraço de feliz ano novo. Lembro das crianças… (Flávio chora). Isso me marcou muito. Amigos de infância, outros que surgiram ao longo da vida… Ainda dá a impressão de que eles vão aparecer, que é mentira, que no carnaval a gente vai viajar de novo. Sempre que paro de falar e vem o pensamento é neles que penso. A gente estava muito feliz. Todo mundo adorou a casa. O Márcio chegou a comentar que poderia chover todos os dias que ele ficaria lá por ser um paraíso. As autoridades não podem mais liberar construções em locais de risco. É muito interesse pessoal, dinheiro envolvido. Isso tem que ser proibido."