A luta contra o vírus da Aids tem diversas frentes de combate. Existe a batalha para conter a expansão da epidemia, vencer o preconceito, desenvolver medicamentos mais eficazes e garantir o acesso ao tratamento. A mais recente disputa, porém, foi travada no palanque político e comercial. Com muitas vitórias brasileiras. A primeira delas foi a aprovação pelos 138 países integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) de uma moção que passou a considerar o acesso universal aos medicamentos como um direito humano. “Dessa forma, a saúde se sobrepõe às questões comerciais e os medicamentos ganham caráter de bem social”, comemora Artur Kalichman, coordenador do programa estadual de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids de São Paulo. Outro avanço veio agora. Na semana passada, Brasil e Estados Unidos colocaram fim num bate-boca de cinco meses firmando um acordo bilateral sobre medicamentos. Se o País quiser licenciar algum produto terá de avisar antes os americanos sobre sua intenção.

A decisão foi anunciada na 1ª Conferência Mundial da ONU sobre HIV/Aids, ocorrida na semana passada em Nova York. No encontro, o programa nacional de combate à Aids foi destaque e o Ministro da Saúde, José Serra, foi convidado a falar sobre o trabalho desenvolvido no País, ressaltado como exemplo a ser seguido. “Principalmente na determinação de criar políticas sensíveis de saúde pública”, disse a ISTOÉ o secretário-geral da ONU, Kofi Annan.

Preços – Esse reconhecimento aparece no documento elaborado pela ONU que serve de guia para outros países em guerra com a epidemia. A declaração inclui recomendações como a identificação, em cada região, dos fatores específicos que levam ao aumento das infecções. Outra proposta brasileira que ganhou força é de que os laboratórios farmacêuticos estabeleçam preços diferenciados. Ou seja, que mantenham sua margem de lucro nos países de Primeiro mundo, mas a rebaixem nos países em desenvolvimento. Como disse a ISTOÉ o diplomata brasileiro Marcos Trujillo, “não se quer tirar o pão da indústria farmacêutica. Só não podemos continuar lhes garantindo o caviar”.

Os elogios recebidos pelo programa dão um trato na auto-estima nacional, mas isso não quer dizer que o trabalho de combate à Aids no Brasil esteja livre de obstáculos. A discussão sobre o preço dos medicamentos continua. O acordo para negociar a quebra de patentes foi fechado apenas com os laboratórios americanos. A queda-de-braço prossegue, no entanto, com empresas de outros países. Na semana que vem, deve ocorrer uma reunião entre o governo e o laboratório suíço Roche para discutir o preço elevado do anti-retroviral Nelfinavir (da família dos inibidores de protease e uma das drogas utilizadas no tratamento da doença).

Dos 12 medicamentos distribuídos pelo governo, oito são genéricos (fabricados pela indústria nacional). É isso que garante o acesso universal aos remédios para os portadores do HIV. O comerciante J.G., 38 anos, de São Paulo, com Aids desde 1993, se beneficia do programa. Quando começou a se tratar, ele precisou vender o carro para custear as consultas e os remédios, que chegavam a R$ 2 mil por mês. “O acesso universal ao tratamento salvou minha vida”, diz J.G. O governo adquire também quatro medicamentos feitos por laboratórios estrangeiros, por valores bem maiores do que os dos genéricos. A idéia é baixar esses preços. Para isso, há dois caminhos: a negociação e a quebra de patentes. “É necessário baixar os preços. Não existe justificativa para os medicamentos custarem tão caro”, diz o infectologista André Lomar, de São Paulo.

Há mais um lado nessa questão. Representantes de organizações não governamentais festejam o reconhecimento do modelo brasileiro, mas acham que ainda é cedo para comemorar o acordo de medicamentos fechado com os americanos. “Ele resolve os problemas por um tempo e força a baixar preços, mas abafa uma questão internacional importante: a necessidade de quebra das patentes”, comenta Mário Scheffer, representante dos usuários no Conselho Nacional de Saúde. “O monopólio das patentes é o que mais mata no mundo”, conclui.

Guerra nada particular

A dignidade do Brasil, embora cronicamente doente, ainda não pereceu. Deu sinais inequívocos de vida no congresso sobre a Aids promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU). O País mostrou que o melhor de seu caráter – generosidade, talento e coragem, entre outras qualidades – tem sobrevida. Materializando esta constatação estava a embaixatriz Dulce Maria Pereira, atual secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entidade que congrega a maioria das ex-colônias de Portugal. A brasileira Dulce circulou com singular desenvoltura pelos meandros do congresso. Foi já na condição de estrela do evento (atributo que rejeita com veemência) que discursou na Assembléia Geral da ONU. Dulce é cidadã conhecida pela sua dignidade. Trata-se de uma espécie de santa de casa que faz milagres. Aos 47 anos, esta mulher, negra, nascida em São José do Rio Preto (interior paulista) e educada em escola pública, conseguiu o prodígio de ocupar cargo de liderança numa organização como a CPLP.

ISTOÉ – Na reunião da ONU, o Brasil foi alçado à condição de estrela do encontro. Concorda com essa visão?
Dulce Pereira – Com certeza, ele é a estrela. É bom ressaltar que o Brasil sempre teve uma posição muito discreta e ética no marketing de suas idéias. O processo de divulgação do programa levou muito tempo. O Brasil foi despertando o interesse das nações. Sobretudo dos países africanos de língua portuguesa e do Timor Leste. Todos ficaram muito entusiasmados com o trabalho.

ISTOÉ – A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa teria sido o primeiro grupo de nações a se mirar no exemplo do Brasil. Dá para aplicar fórmulas brasileiras a sociedades tão diversas?
Dulce – Foi seguido o projeto brasileiro em suas linhas gerais. Surgiu a partir dele um outro projeto no qual estão incluídos os interesses específicos de cada país. O Brasil desde o primeiro momento não procurou impor o seu processo particular na comunidade de língua portuguesa. Não se tentou sequer recrutar esses países para garantir a vitória recente na questão das patentes de medicamentos. Essa luta brasileira nem sempre foi visível.

ISTOÉ – Pelos corredores da ONU o que se ouvem são acusações cada vez mais estridentes de que no caso da África existe uma política de extermínio da população através do descaso dos países ricos.
Dulce – Acho imoral a realidade internacional na questão da Aids. Venho de um país que soube trabalhar a prevenção e dar possibilidades de melhor qualidade de vida aos doentes. Por que países mais desenvolvidos e com maiores recursos tecnológicos e monetários não fizeram isso e não tiveram sensibilidade e generosidade para estender seus recursos ao resto da humanidade? O Brasil tratou o problema como política de Estado. Mesmo sem ter os recursos de nações ricas, agora oferece know-how a quem quiser. Assim, conhecendo a realidade brasileira, é impossível não qualificar como imoral a realidade internacional.

ISTOÉ – As soluções encontradas pelo programa brasileiro são muito criativas e corajosas. O que se destaca nesse modelo?
Dulce – Os países têm realidades próprias e suas necessidades são muito diversificadas. Mas o modelo brasileiro tem aspectos que podem servir de exemplos. O programa tem como uma de suas principais qualidades a absoluta transparência. Ele inclui a contribuição dos mais variados setores da sociedade, como partidos políticos. No combate à Aids, você tem desde o PT e o PCdoB, passando pelo PFL, PMDB e PSDB, até os partidos mais à direita. Outro caminho que deve ser trilhado por outras nações é a popularização do uso de preservativos. Os brasileiros estão usando cada vez mais os profiláticos. E para que isso ocorresse o País foi obrigado também a liberar-se de preconceitos e a lidar com a questão da prostituição. A comunidade homossexual foi incorporada. Aprendeu-se também que as mulheres fazem parte dos grupos de risco. O Brasil fez aquilo que tem recebido oposição de muitos países, principalmente de algumas sociedades muçulmanas. Foi deixado claro também que é fundamental a criação de um fundo internacional de combate à Aids. Agora, virá outra questão: quem vai controlá-lo? Quem tiver esse controle poderá decidir se a Aids perde ou ganha a guerra.