Concebido para ser uma demonstração de força depois da barbeiragem federal que levou à crise de energia, o pacote tributário do governo acabou virando um embrulhinho com medidas estudadas há tempos e agrupadas para ornamentar a proposta de prorrogação da CPMF, que expira em junho do ano que vem. Em duas emendas constitucionais, duas medidas provisórias e um projeto de lei, o governo mantém a CPMF como está até dezembro de 2004, federaliza a legislação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e do ISS (Imposto sobre Serviços), tributos que hoje são definidos pelos governos estaduais e prefeituras, e reduz o peso dos impostos em cascata para alguns setores exportadores. O alívio nas regras do imposto do cheque, permitindo que ele seja compensado no pagamento de outros tributos, chegou a ser discutido, mas caiu na última hora. Obra do presidente do Banco Central, Arminio Fraga. No embrulho, o governo também ataca um problema antigo: as incontáveis ações judiciais contra o Fisco, especialmente no caso de pacotes de emergência. Pela proposta, matérias tributárias constitucionais irão direto para julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), suspendendo e anulando decisões de instâncias inferiores. A compensação, pela proposta do Executivo, só valerá a partir de 2005, quando a CPMF se torna um imposto definitivo. “É uma meia-sola fiscal”, reagiu o deputado Germano Rigoto (PMDB-RS), presidente da comissão da Câmara que, por mais de dois anos, tentou sem sucesso alinhavar um projeto de reforma tributária ampla. “Mudanças tributárias não são triviais. Envolvem milhares de interesses e demandam cautela”, justificou o ministro Malan, ao anunciar as medidas na sexta-feira 29.

Outras demandas antigas também foram deixadas de lado, como a proposta do Banco Central, que há muito tenta isentar as operações em Bolsas de Valores da cobrança da CPMF. Continua a pendenga entre o presidente do BC e o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, contrário à idéia. Na quinta-feira 28, quando Malan foi ao Palácio da Alvorada com o restante da equipe econômica para discutir o desenho final da minirreforma com o presidente Fernando Henrique, deixou no gabinete o texto proposto por Fraga. Desta vez, o BC tentou facilitar a aprovação da medida enfeitando a minuta com uma cereja para o contribuinte doméstico. Além das operações em Bolsa, o trânsito de dinheiro entre conta corrente e fundos de investimento também não seria mais garfado pelo imposto do cheque. A Receita Federal fez os cálculos: a perda chegaria a R$ 5 bilhões anuais, quase um terço da arrecadação da CPMF (R$ 18 bilhões em 2001). Em tempos de retração econômica e instabilidade no mercado externo, Malan preferiu pensar melhor. Por enquanto, na peleja entre Fraga e Maciel, o secretário da Receita está em vantagem.

O BC quer liberar as Bolsas do peso da CPMF, na tentativa de atrair investimentos estrangeiros e diminuir o buraco nas contas externas, considerado a principal vulnerabilidade da economia brasileira. Na última semana, a crise de energia e a derrocada argentina fizeram o governo rever as previsões de captação de investimentos externos deste ano. De dezembro para cá, as projeções só pioraram, baixando em 40%. Para tentar evitar o estouro da meta de inflação e conter a disparada do dólar, foi preciso recorrer a US$ 2 bilhões extras do FMI. Para o BC, a cobrança da CPMF nas operações financeiras piora o quadro. O peso do tributo leva empresas brasileiras a fugir do mercado de capitais nacional e a lançar papéis na Bolsa de Nova York. Com isso, dólares que poderiam entrar no País, reforçando o fôlego do BC na batalha cambial, ficam lá fora. Há dez dias, Fraga chegou a antecipar que a medida seria incluída no minipacote. Elaborou o texto e o apresentou a Malan na segunda-feira 25. No contra-ataque, os técnicos da Receita argumentaram que a Bolsa americana é mais atraente porque é mais competitiva, rigorosa e transparente que a brasileira.

Aperto – O problema maior é que, no Orçamento, ninguém descobriu ainda como compensar a fatura do perdão fiscal aos investidores estrangeiros. A retração econômica ameaça as metas de arrecadação. O aumento dos juros eleva as despesas do governo. Nesse quadro, fica difícil encontrar quem pague a conta. Além disso, a exceção pode fortalecer a defesa de outros alívios tributários bem mais populares e já em tramitação no Congresso. “Não dá para pensar em liberar o mercado acionário antes de corrigir a tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas, congelada há anos”, ataca o senador Paulo Hartung (PPS-ES), autor de projeto nesse sentido. Dessa forma, o Tesouro perderia outros R$ 3,8 bilhões. O Executivo só deu refresco para alguns setores, escolhidos a dedo. Além dos ajustes que favoreceram grandes empresas exportadoras (um perdão de R$ 500 milhões), um projeto de lei reduz a tributação sobre gás para usinas termelétricas e carvão mineral, medidas com impacto marginal sobre a arrecadação. “Nenhum exportador tem o direito de reclamar de mais nada”, valorizou Malan.

A parte do embrulho que impede governadores de mexer nos porcentuais do ICMS, proibindo incentivos fiscais (uma alternativa para controlar a chamada “guerra fiscal” entre os Estados), e acaba com o dumping no ISS praticado pelas prefeituras é outra velharia. Pronta há mais de um ano, foi desengavetada na tentativa de melhorar as condições de negociação do pacote no Congresso, mas até os tucanos mais compreensivos duvidam que a estratégia dê resultados. “Fica difícil aprovar medidas isoladas fora de uma reforma tributária mais ampla”, avalia o deputado Antonio Kandir (PSDB-SP). O governo sabe que são ruins as condições para tocar propostas que resultem em aperto fiscal. Suou a camisa para aprovar a sobra de caixa de R$ 31 bilhões nas contas de 2002, prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Com tanta oposição, fica difícil saber se terá força para espichar o imposto do cheque por mais 30 meses.