Criada em abril para investigar o problema da criminalidade no Rio Grande do Sul no período da administração Olívio Dutra, a CPI da Segurança Pública ameaça revelar elos do governo gaúcho com a jogatina clandestina, além de trazer à tona os preparativos para a instalação de um “cassino virtual” no Estado, um esquema inédito e milionário de exploração de apostas chamado loteria online. A Procuradoria da República do Ministério Público Federal do RS já advertiu o governo que é inconstitucional, como vem sendo feita, a legalização de loterias ou qualquer tipo de jogo de azar em âmbito estadual. A crise foi detonada no dia 17 de maio, quando os delegados Farney Duarte e Nelson de Oliveira, que integravam a cúpula da administração policial no começo da atual administração, disseram à CPI que dias depois da posse de Olívio Dutra, em janeiro de 1999, o então chefe de polícia escolhido pelo PT, Luiz Fernando Tubino da Silva, comunicou ao primeiro escalão policial uma suposta determinação de emissários do governo: o jogo do bicho no Estado não deveria mais ser reprimido, porque o dinheiro da contravenção seria destinado a obras sociais do Executivo. Essa história foi comunicada aos delegados numa reunião do Conselho de Administração Superior da Polícia (CAS), em fevereiro de 1999, pelo delegado Tubino. Dias antes, Tubino reunira-se com Diógenes de Oliveira e Dirceu Lopes, que trabalharam na coordenação da campanha petista no ano anterior e hoje integram o governo. Os dois foram ao gabinete do então chefe de polícia, de quem Olívio Dutra era amigo, para sugerir que os policiais com funções de chefia na nova administração destinassem 20% do valor de sua gratificação ao PT. Durante a conversa, Tubino teria falado sobre rumores de que os banqueiros do jogo do bicho cortariam a propina para a polícia, transferindo-as diretamente ao governo. Sem falar em banqueiros, Dirceu Lopes confirmou, no entanto, que o dinheiro da contravenção seria aplicado em obras sociais do Executivo.

As afirmações dos delegados sobre a determinação supostamente recebida por Tubino foram negadas pelo Palácio Piratini (sede do governo estadual). O chefe da Casa Civil, Flávio Koutzii, atribuiu as denúncias dos delegados à “banda podre” da polícia, que estaria tentando obstruir investigações sobre o envolvimento de policiais com o jogo do bicho e o crime organizado. Nesse clima, no dia 31 de maio a CPI ouviu outros dez delegados sobre as acusações do ex-chefe de polícia. Dois deles, Roberto Pimentel e Lauro Santos, confirmaram as declarações, enquanto os demais se limitaram a dizer que nada ouviram. Pimentel disse também que recebera, no dia anterior ao seu depoimento na Assembléia Legislativa, apelos de Tubino para que não confirmasse a história. “Ele me pediu para negar porque somos amigos”, relatou o delegado. A confusão aumentou na terça-feira 26, quando o ex-tesoureiro do PT Jairo Carneiro dos Santos, que havia dito numa conversa gravada com dois jornalistas que o partido havia recebido dinheiro do jogo do bicho na campanha eleitoral de 1998, declarou à CPI que mentiu quando fez tais declarações.
 

Ligações perigosas – No mesmo dia que essa história do delegado veio à tona na Assembléia, em 17 de maio, o advogado Juarez Rosa da Silva enviou uma carta ao governo, na condição de consultor de “sociedades administradoras de bingos e afins”. A sociedade não tem existência legal, e Rosa Silva é cunhado de João Carlos Franco Cunha, proprietário majoritário do Bingo Roma e da maior casa de jogos de máquinas caça-níqueis de Porto Alegre, que funciona a duas quadras do QG da Polícia. João Carlos também representa uma fábrica espanhola de máquinas de apostas, a Recreativos Franco, além de ser sócio de Thales Carvalho na maior banca de jogo do bicho do Estado, controladora dos pontos de jogo do setor central de Porto Alegre. Na carta, o advogado Juarez Rosa da Silva revela saber com antecedência que o Poder Executivo revogaria o inciso II do artigo 2º do Decreto nº 40.593, assinado por Olívio Dutra em 16 de janeiro de 2001. Este inciso autorizava a exploração, no Rio Grande do Sul, de máquinas de apostas eletrônicas – conhecidas como caça-níqueis –, rebatizadas com o nome de videoloteria. Ao se empenhar na manutenção do item sobre essas máquinas, o consultor não só antecipou o que ocorreria no dia seguinte como ainda comentou os detalhes da instrução normativa 003/2001-Lotergs, destinada a disciplinar a exploração da videoloteria. O problema é que essa instrução ainda não tinha sido publicada pelo governo e, por isso, em tese, o consultor não poderia conhecê-la. Esse instrumento estipulava regras para os futuros candidatos à exploração dos caça-níqueis. O suposto acesso privilegiado à instrução mostraria que Rosa da Silva sabia que seus clientes seriam os concessionários da jogatina.

Olívio Dutra não deu ouvidos aos apelos e revogou, com um novo decreto, o inciso sobre a videoloteria, em 18 de maio, um dia depois dos depoimentos dos delegados Farney Duarte e Nelson de Oliveira na CPI. Mas não foram revogados os demais artigos do Decreto 40.593, de janeiro de 2001, que instituíram o “bingo tradicional gaúcho”, a “loteria de múltiplas chances” e a “loteria instantânea”, além de uma modalidade que promete superar todas as demais. No artigo 3º desse decreto, o governo cria a Loteria On Line/Real Time, um sistema de apostas de última geração dominado por grandes empresas internacionais.

A Loteria On Line/Real Time é um cassino virtual. E, como no mundo das apostas os segredos têm vida curta, a instrução normativa que a disciplina também já é conhecida em detalhes pelo “mercado”, antes de sua publicação. Esse cassino vai comercializar “apostas online e simultâneas, com sorteios também online e simultâneos”, conforme a norma que o regulamenta. As apostas e sorteios serão oferecidos “em pontos-de-venda diferentes, com indicação pelo apostador de determinados números ou símbolos, em bilhetes impressos (volantes de apostas) ou em apostas aleatórias mediante pagamento”.

Vale tudo – O cassino virtual é a materialização dos sonhos dos jogadores compulsivos. Ele viabiliza qualquer tipo de jogo, via terminais de computador, que podem ser instalados em qualquer lugar. A regulamentação não impõe nenhuma exigência para o número de terminais instalados nem traz especificações para as instalações físicas dos pontos de aposta. Isso quer dizer que o dono do cassino pode instalar cabinas de jogo nas ruas, em quiosques. Também poderá colocá-las em bares, restaurantes, casas noturnas e repartições públicas. Basta que os interessados nos pontos de aposta se credenciem na Lotergs e abram uma conta no Banrisul, para depósito do dinheiro apostado. Especialistas antecipam que apostas poderão ser feitas pela internet, com uma simples conexão à central operacional, e até via telefones celulares.

No caso da loteria On Line/Real Time, o governo ficaria apenas com 9% do movimento total de apostas do cassino virtual, que, segundo estimativas iniciais, pode chegar, no Rio Grande do Sul, a R$ 300 milhões por mês. A parte do leão caberia aos sócios permissionários, que embolsariam 31% desse total, ficando 60% para serem divididos entre prêmios e impostos.

O governo já foi avisado dos riscos legais que corre pela Procuradoria da República. Em 22 de fevereiro, o diretor da Lotergs, José Vicente Goulart Brizola, recebeu uma recomendação para que o governo gaúcho “se abstenha de, com base no Decreto Estadual nº 40.593, de 16 de janeiro de 2001, ou em qualquer legislação estadual, credenciar, permitir, conceder ou autorizar toda e qualquer espécie de sorteio; e revogue e anule eventual credenciamento, permissão, concessão ou autorização já efetivados, por se tratar de atividade administrativa de competência exclusiva da Caixa Econômica Federal”. Na recomendação, os procuradores da República Vitor Hugo Gomes Cunha (procurador-chefe) e Waldir Alves lembram que a Constituição Federal estabelece a competência exclusiva da União para legislar sobre consórcios e sorteios. Por essa razão, apenas uma lei federal pode oferecer “ao público consumidor toda e qualquer forma de sorteio”. Eles alertam também que “é inconstitucional toda e qualquer lei ou ato infralegal estadual ou municipal que disponha sobre qualquer espécie de sorteio”. E avisam: a exploração irregular de jogos de bingo “tem sido utilizada para acobertar a prática de ilícitos penais, como crime fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro”.