No sertão da Bahia, por onde passou Virgulino Ferreira da Silva, ninguém mais sabe quem é cangaceiro e quem é “macaco” – nome dado pelos seguidores de Lampião aos policiais de sua época. A arrumadeira Maria Candelaide de Souza, 41 anos, chora por seu filho Márcio, que agora só vê em sonhos. Márcio, o bom filho, ajudava a mãe a cuidar dos quatro irmãos. Márcio, o corredor de maratonas, colecionava medalhas. Márcio, o futuro marido, tinha comprado um fogão de duas bocas para seu casamento com a namorada Ediene. No dia 5 de março, ao fazer uma redação, o esforçado aluno da sexta série de uma escola pública escreveu que só tinha medo da violência. Três dias depois, o menino corredor foi parado a tiros. Tinha 18 anos. Está enterrado em um túmulo sem lápide. Para a polícia, Márcio era suspeito de um crime: a morte, em fevereiro, do policial militar José Adriano dos Santos. Outros dois estudantes – Daniel Nunes de Almeida e Cleiton Queiroz Ignês, ambos com 17 anos – foram executados pela mesma suspeita. Cleiton chegou a ser preso, dia 21 de abril, mas foi liberado no dia seguinte por falta de provas. A caminho de casa, foi morto com tiros na cabeça e no peito por homens que fugiram em motos. Os assassinatos de Márcio, Cleiton e Daniel entraram nas estatísticas policiais como crimes sem solução, fatalidades da violência em Juazeiro, a cidade castigada pela seca e pela vizinhança com o “Polígono da Maconha” – uma das maiores plantações da cannabis em território brasileiro. É muito mais do que isso. Juazeiro, 170 mil habitantes, vive hoje refém de um grupo de extermínio formado por policiais, que transformou a cidade sertaneja em um reduto do cangaço chapa-branca.

“Há um esquadrão da morte agindo em Juazeiro, formado por pistoleiros e policiais”, aponta a juíza Olga Regina Guimarães, 41 anos, titular da Vara Criminal, que abriu uma guerra contra os chamados exterminadores de Juazeiro. Só entre janeiro e março deste ano, a juíza identificou 47 mortes patrocinadas pelo esquadrão local. Execuções que seguiram um ritual. Na mira, jovens entre 17 e 23 anos, muitos deles pequenos infratores ou ex-informantes da polícia, moradores de bairros pobres da periferia. Os matadores chegam de moto e andam em dupla. Miram na cabeça ou na coxa – um tiro na veia femural causa morte rápida por hemorragia. Ao relatar as mortes, a PM costuma registrar junto o passado criminal da vítima. Acusado de ter participado de assaltos a bancos, Braulino Alves Filho foi executado a tiros. Os matadores fugiram em uma moto. No dia 10 de abril, no bairro Piranga, Fabrício Queiroz morreu depois de ser baleado por dois homens de moto. Alemar Andrade, 26 anos, levou três tiros, um deles na coxa esquerda, quando jogava bola em um campo de futebol. Dois homens fugiram. De moto. Testemunhas e familiares têm identificado como autores dos tiros policiais ou pessoas ligadas a eles, mas poucos aceitam testemunhar. Na comunidade do Tabuleiro, no entanto, um caso está derrubando a lei do silêncio.
 

Pelas costas – No dia 15 de junho, o plantador de cebolas Francisbergue Lima, 14 anos, voltava para casa quando três policiais começaram a atirar. Levou um tiro na coxa direita e só não morreu porque foi socorrido a tempo por vizinhos. Pela primeira vez, testemunhas aceitaram depor contra os policiais, que em seu relatório alegaram que o menino estava armado e atirou primeiro. “Eu não tinha nem cortador de unha”, diz o sobrevivente. A história da violência policial em Juazeiro é contada por mães, viúvas e crianças sem pai. Em sua casa de 50 metros quadrados, no Bairro do Argemiro, Marina Maria Araújo, 37 anos, tem sete filhos para alimentar. Marivana, 8 anos, gosta de folhear o último álbum de fotos do pai – Manoel Ramos de Araújo, estirado no chão de uma cela, parece saído de um massacre: o rosto salpicado de ferimentos e o corpo marcado por hematomas. Preso para confessar o que não fez, o carroceiro foi torturado até a morte. Em seu mundo de mentirinha, a polícia forjou tudo, da ocorrência ao laudo, que apontou “causa indeterminada” para a morte. Foram denunciados o delegado Manoel Santana e três agentes. Ninguém foi punido. O delegado hoje é titular da Delegacia de Crimes contra a Pessoa.

A direção das polícias civil e militar não quer nem ouvir falar no assunto. Prefere dizer que a juíza Olga Regina persegue a polícia. Também não admite a tortura, que acontece à luz do dia. A Justiça já mandou lacrar até uma sala de torturas que funcionava dentro do complexo policial, com uma máquina de dar choque e palmatórias batizadas de Tiazinha e Feiticeira. “São sádicos e psicopatas que continuam nos quadros da polícia”, protesta a juíza. Acusado de roubo, Francisco Granja, 19 anos, foi preso há 15 dias por três PMs e levado algemado para uma estrada deserta. Foi espancado até ter o lado direito do rosto desfigurado. A PM diz que ele caiu do camburão. Em março de 1999, Josimar de Oliveira, 20 anos, ousou denunciar policiais civis na Justiça. “Sei que estou decretando minha sentença de morte”, disse ele, na época. Uma semana depois, apareceu morto.

 

Um dos policiais denunciados, Edilson Conceição de Oliveira, trabalha hoje em Feira de Santana, destino da maioria dos policiais que barbarizam em Juazeiro. O delegado Adailton Adan, que responde por abuso de autoridade e torturas em Juazeiro, chefia agora o Serviço de Inteligência da Polícia. Não perdeu tempo: é acusado de torturar um estudante. Todas as nomeações foram feitas pela secretária de Segurança da Bahia, Kátia Alves. Enfrentar quase sozinha o esquadrão de Juazeiro tem mudado a rotina da juíza. Ela só sai do fórum para ir para casa, onde dorme com uma escopeta ao lado da cama. Não é paranóia.

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Na última semana, Olga Regina soube que seu assassinato fora tramado dentro da cadeia de Juazeiro. Preso por matar um líder comunitário, Valdemar José Alves, o Demo, que já foi candidato a vereador, estava arregimentando pistoleiros para matar Olga. Quem entregou o plano foi outro preso, Gilvan Rodrigues, que está desaparecido. A juíza mandou ao ministro da Justiça, José Gregori, cópia do depoimento, mas guarda uma fita explosiva em que Gilvan detalha a trama para assassiná-la e também ao prefeito Joseph Bandeira. “Não temo os bandidos, eu temo a polícia”, diz a juíza. “Rezo todo santo dia para que ninguém me mate”, emenda o prefeito, que protagonizou uma das maiores conquistas eleitorais do PT nas terras dominadas pelos aliados do ex-senador Antônio Carlos Magalhães. Mas, enquanto o Estado comanda as polícias civil e militar, o prefeito petista só controla os 260 homens da guarda municipal. Do alto de 50 anos de sacerdócio, dom José Rodrigues, 75 anos, 1,56 m, o pequeno grande bispo de Juazeiro, se diz horrorizado. “Estão matando os pobres da cidade”, alerta ele. Em Juazeiro, não adianta mais reclamar nem para o bispo. 

“A reencarnação boa” de Maria Bonita

Reza o dito popular que existe a Justiça boa, a ruim e a da Bahia. Mas a conivência do Judiciário baiano com os poderosos encontra exceções. Em Juazeiro, Olga Regina Guimarães, 41 anos, juíza há 12, tem virado o sertão de pernas para o ar. Na Comarca de Ubaíra, onde atuou nos anos 90, constatou o espancamento de presos. Mandou prender os policiais e soltar os presos. Em Jaquaquara, com a segurança de quem é boa de gatilho, prendeu pessoalmente, de revólver em punho, o delegado do município. No ano passado, prestou depoimento à CPI do Narcotráfico e acusou a secretária de Segurança Pública da Bahia, Kátia Alves, de ser conivente com o roubo de cargas e a criminalidade. Desde então, o esporte predileto da secretária é tentar tirar a juíza do cargo. Em sua casa, onde cria galinhas, Olga Regina, apontada pelos colegas como a “reencarnação boa” de Maria Bonita, conversou com ISTOÉ.

ISTOÉ – Existe um esquadrão da morte em Juazeiro?
Olga Regina Guimarães – Existe.

ISTOÉ – Quem mata?
Regina – As famílias das vítimas, testemunhas e as evidências apontam policiais e seus comparsas como autores.

ISTOÉ – Quem morre?
Regina – As vítimas são pobres, adolescentes que praticaram pequenos crimes e que algumas vezes foram colaboradores da polícia.

ISTOÉ – Que cuidados a sra. toma para evitar represálias?
Regina – Só vou do fórum para casa e de casa para o fórum. Na final do campeonato baiano, fiquei morrendo de vontade de ver Bahia e Juazeiro, mas achei melhor não ir ao estádio.

ISTOÉ – O que é preciso mudar?
Regina – É preciso que os policiais sejam bem treinados, bem pagos e, do nosso lado, que os juízes não sejam omissos. É a impunidade que gera violência. Se os juízes não julgam, aumenta a violência.


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