A reportagem de capa desta edição sobre o preconceito oculto, de autoria da subeditora de Brasil, Ana Carvalho, e do editor Aziz Filho, convoca à reflexão. Pesquisas, decisões de tribunais, dados do mercado de trabalho, do sistema educacional e da vida cotidiana relatados nesse trabalho jornalístico demonstram que a propalada democracia racial brasileira é uma peça de ficção. A constatação conduz a uma pergunta: como é possível ter democracia política sem democracia racial num país em que negros e mulatos compõem a maioria da população? Opressões não faltam no Brasil da cordialidade aparente, acostumado a tratar bem estrangeiros, mas igualmente habituado a exercer a tirania nas relações sociais internas. O que chama a atenção no caso do racismo brasileiro, em comparação com o preconceito contra homossexuais e outras discriminações igualmente odiosas, é o fato de tratar-se não de uma minoria, mas de uma maioria oprimida. Construir esse descalabro exigiu séculos de esforço. O último país a abolir a escravatura desacorrentou os negros do pelourinho, mas não os integrou à sociedade. A senzala aumentou de tamanho e passou a incluir outros subjugados – os pobres e os paupérrimos –, muitos deles também negros. Poucos brancos de classe média e alta admitem o preconceito racial, mas ele rola solto em piadas pesadas contadas na intimidade. A maioria negra, embora silenciosa, inspira medo pelo seu número. Não importa se uma estatística recente revela ser branca a maior parte dos assaltantes. O branco que vê três negros caminhando na sua direção muda de calçada. A minoria branca, dona do dinheiro, dos empregos, dos bancos escolares e da felicidade, pode continuar achando que o Brasil é uma democracia. Mas a maioria negra e mulata sabe que vive sob uma ditadura racial maldisfarçada.