Desvio de dinheiro público para empresas inexistentes, empréstimos irregulares e favorecimentos ilícitos são alguns dos fantasmas que saíram do armário, chegaram ao Ministério Público do Pará e têm atrapalhado o sono do presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA). Muitas dessas assombrações estão detalhadas nas mais de três mil páginas de dois relatórios do Banco Central, que relacionam uma série de irregularidades praticadas no Banpará, no período em que Jader foi governador. Os documentos mostram que o banco foi dilapidado em aproximadamente US$ 10 milhões apenas em 1984. Boa parte desse prejuízo foi produzido através de operacões entre agências do próprio Banpará, envolvendo empresas fictícias. Uma delas era o Instituto Tecnológico de Brasília (ITB), titular de uma conta na extinta agência do Banpará no Distrito Federal.

Diariamente, após o encerramento do expediente bancário, eram realizadas diversas transferências de contas da agência central do Banpará em Belém para a conta do ITB. Em Brasília, o dinheiro era aplicado no overnight e voltava na manhã seguinte para as contas de origem. O problema é que retornava apenas o valor nominal do que fora aplicado. Os rendimentos – elevados em uma época de inflação galopante – ficavam creditados na conta do ITB. Oficialmente nada disso era registrado nos balanços diários da agência em Belém. Quando fizeram suas investigações, os auditores do BC descobriram que o ITB era uma empresa-fantasma e quem respondia por ela, inclusive assinando cheques, era outro fantasma, conhecido pelo nome de João da Silva. O Ministério Público tentará rastrear essa dinheirama para descobrir a verdadeira identidade de João da Silva. Os promotores investigam a informação de que se trata do senador Jader Barbalho.

Outra porta de saída do dinheiro público para os bolsos privados mantinha-se camuflada sobre a rubrica de “Adiantamento a correntistas”. Funcionava como uma espécie de cheque especial. Mas era especialíssimo, pois nessas operações não existiam juros, correção ou IOF. Marcílio Guerreiro Figueiredo, ex-gerente-geral da agência central do Banpará, autorizava que alguns correntistas privilegiados fizessem saques bem superiores ao saldo que haviam depositado. Essas contas chegaram a permanecer até seis meses em aberto, sem que o Banpará fizesse nenhum tipo de cobrança. Nos relatórios do BC estão identificados todos esses correntistas, e o Ministério Público já tem conhecimento de que muitos deles tinham relações pessoais com o então governador Jader Barbalho.

Os relatórios do Banco Central detalham, ainda, como alguns empréstimos irregulares contribuíram para o rombo aberto no Banpará. Apenas um deles é responsável por um prejuízo de US$ 2 milhões. O favorecido foi George Alfred Mellen, um americano de 85 anos, radicado no Pará desde 1978, proprietário da Maiame – Madeira Italia Americana, uma empresa falida com sede em Breves, no arquipélago de Marajó. Em 1984, era uma das maiores madeireiras do Brasil, com cerca de dois mil funcionários, seis serrarias, 27 rebocadores e 22 balsas. Em agosto daquele ano, o Ministério das Minas e Energia autorizou George a instalar em sua empresa uma usina termoelétrica. O golpe contra o Banpará começou a ser armado no mês seguinte. O americano foi procurado por diretores da Centrais Elétricas do Pará (Celpa), que queriam comprar energia de sua usina. Foi feito um contrato e o americano iria receber cerca de US$ 6 milhões por ano pelo fornecimento da energia. Na época, a Celpa não tinha autorização para comprar de um particular e o americano não estava autorizado pelo governo a vender energia. Evidentemente, o contrato não foi honrado, mas usado para tirar US$ 2 milhões do Banpará.

Em dezembro de 1984, o americano foi procurado pelo empresário José Maria da Costa Mendonça, então proprietário da Eccir, empreiteira responsável pela maioria das obras viárias na gestão de Jader. “Ele falou em nome do governador e disse que precisavam de US$ 2 milhões para tapar um rombo no Banpará”, diz George. “Respondi que não tinha esse dinheiro e eles propuseram que minha empresa fizesse um empréstimo no próprio Banpará. Como garantia, me ofereceram ações da Eccir”, lembra. Apesar de nunca ter mantido sequer uma conta corrente no banco estatal, em apenas quatro dias o americano conseguiu levantar os US$ 2 milhões. O dinheiro foi liberado em 17 de dezembro de 1984 e no mesmo dia George entregou a Mendonça três cheques que totalizavam US$ 1,5 milhão. Com ele ficaram US$ 500 mil a título de pagamento pela contribuição. A garantia dada ao banco para que o empréstimo fosse concedido foi o contrato celebrado entre a Maiame e a Celpa. “Mendonça me disse que o dinheiro foi para o governador Jader”, acusa o americano. “Nunca falei com George em nome do Jader nem sabia que o dinheiro que ele me emprestou havia saído do Banpará”, diz Mendonça. “É verdade que na época eu e Jader tínhamos um namoro, mas depois cada um tomou seu caminho e não converso com ele há mais de década.”

Passados 17 anos, o Banpará não recebeu nenhum centavo dos US$ 2 milhões liberados para o americano. Chegou a entrar na Justiça para cobrar, mas o processo sumiu. “É estarrecedor, mas faz dez anos que esse processo desapareceu”, diz Dahil Paraense de Souza, juíza da 15ª Vara de Belém. Também há dez anos que o americano tenta receber o dinheiro da Eccir, pois, apesar de nada ter pago ao Banpará, afirma ter ficado com o nome sujo, perdido o crédito e por causa disso ido à falência. “Todas essas fraudes existiram e o responsável por elas foi o gerente Marcílio Guerreiro Figueiredo, que eu mesmo demiti para o bem do serviço público”, afirma Nelson Ribeiro, ex-presidente do Banpará e antecessor de Jader no Ministério da Reforma Agrária. Figueiredo nega que seja o responsável e assegura que tudo o que fez no banco foi “com o conhecimento da diretoria para atender clientes amigos do governo”. Os promotores que trabalham no caso acreditam que, de fato, fraudes do tamanho das encontradas pelo BC no Banpará não seriam feitas apenas por um gerente. Também não é verdade que Figueiredo foi afastado dos quadros do banco a bem do serviço público, pois meses depois da demissão ele acabou empregado na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Foi o governador Jader que me empregou”, diz.

Jader e a Sudam – O relatório do Banco Central é um mapa precioso para nortear a investigação, e o depoimento de Figueiredo pode levar o Ministério Público a desvendar toda a trama envolvendo o dinheiro do Banpará. Mas os fantasmas que atormentam o sono do senador Jader Barbalho também circulam pela Procuradoria da República, onde são investigados os escândalos da Sudam. Um endereço nobre de Brasília – QL2, conjunto 1, casa 1, no Lago Sul – revela fortes indícios das ligações entre Osmar Borges, Alberto Coury Júnior e o lobista João Alberto Lima La Rosa. Borges é apontado pela Procuradoria como o principal laranja de Jader nas fraudes da Sudam. Ele foi sócio do senador na Fazenda Chão de Estrela e é sócio de Coury, com quem chegou a ser preso por envolvimento nessas falcatruas. Apesar de não ser do quadro da Polícia Federal, Coury criou e ajuda a comandar o Grupo de Operações Táticas da PF, ao qual exibia uma falsa carteira de delegado, obtida na gestão de Romeu Tuma. Ele também é investigado por ter negócios com o maior doleiro de Brasília, conhecido como Fayed. “Tenho muita gratidão pelo Fayed. Depois do caso Sudam, foi o único a me apoiar e hoje divido o escritório com ele”, afirma. O caseiro de Borges disse na Polícia Federal que era Coury quem levava Jader para reuniões na casa de seu patrão. “Osmar é meu amigo e parceiro. Tenho nas mãos dele R$ 3 milhões emprestados, mas há uma fazenda em garantia caso ocorra algum contratempo. Frequento a casa dele regularmente, mas nunca levei Jader até lá. Se Jader foi não fui eu quem o acompanhou, diz Coury.”

La Rosa, conhecido negociador de Títulos da Dívida Agrária (TDAs) e precatórios foi sócio de Coury na Aja Agropecuária, empresa desfeita tão logo vieram à tona as mazelas da Sudam. A Aja foi criada com dois objetivos: comercializar títulos públicos e desenvolver projetos agrícolas. Hoje, ela se chama Aja Participações e tem em seu quadro societário Francisco Coury, irmão de Alberto. Há cerca de um ano, a PF fez uma busca em uma fazenda onde a Aja tinha um de seus projetos. Foi encontrado um arsenal de armas pesadas em poder de Alberto Coury. Na QL 2 só existem residências. Ali, Borges, Coury e La Rosa mantiveram um escritório camuflado, onde pessoas ilustres, como o ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira e o jurista Graça Wagner, davam suporte jurídico a algumas negociações envolvendo TDAs, precatórios e outros títulos públicos. Para cuidar dos negócios com a Sudam, os três eram assessorados por uma empresa chamada Préstimo, que tinha como representante Ricardo Melo. Misteriosamente, o escritório da QL 2 fechou tão logo foi descoberto o esquema de fraudes na Sudam. Hoje, a mansão, de propriedade dos três, está fechada.

Depois da prisão de Osmar e de Coury, a Polícia Federal está de olho em La Rosa. Há a informação de que, para lavar a dinheirama que recebia, ele comprava carros importados em Goiânia. Chegou a negociar mais de 20 Mercedes de uma só vez. La Rosa recebia de seus “clientes” da QL 2 cheques ao portador e os repassava em agências de automóveis. Levava os carros e os revendia, passando-os diretamente para o nome do novo proprietário. Só então os cheques eram apresentados. Assim, ele evitava que seu nome aparecesse na transação. Seu hobby é um haras nas proximidades de Brasília, chamado Avallon. Ao contrário dos sócios, ele nega ter qualquer relação com Jader. “Borges fez parte de meu escritório, mas nunca vi o senador Jader Barbalho por lá. Se isso ocorreu, não é de meu conhecimento”, diz La Rosa. A PF já sabe que os três enriqueceram rapidamente, chamando a atenção da Receita. O grupo é dono de inúmeras fazendas, avião e diversos tipos de empreendimentos.

 

Fazenda Paraíso – De fato, o patrimônio desse trio indica que lidar com títulos públicos e projetos agrícolas é um ramo bastante lucrativo. E são esses títulos que também assombram as noites de Jader. Apesar da resistência do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, já está decidido que Jader terá que depor para a Polícia Federal a fim de explicar as irregularidades na emissão e na venda, feita por Vicente Pedrosa, das 55,2 mil TDAs da Fazenda Paraíso, denunciadas por ISTOÉ. Na terça-feira 26, o Senado aprovou a quebra dos sigilos bancários de Pedrosa e do casal Vera Campos e Serafim de Moraes, comprador das TDAs. Serafim e Vera já apresentaram documentos que confirmam a compra e dizem ter visto Jader cumprimentar Pedrosa no saguão do Hotel Hilton, em São Paulo, logo depois de concretizada a operação. Na quinta-feira 28, Pedrosa apresentou versões inacreditáveis em depoimentos ao corregedor do Senado, Romeu Tuma (PFL-SP), e à Polícia Federal. Contrariando todas as provas, afirmou que nunca vendeu as TDAs da Fazenda Paraíso. Serafim e Vera, no entanto, não se intimidam. Eles levaram à PF o recibo de pagamento de um jantar com Pedrosa no restaurante Trainera em São Paulo, no dia 6 de dezembro de 1988. De acordo com os registros do Hilton, nessa data Jader estava hospedado no hotel.

Colaborou Carlos Mendes (PA)

Rede de proteção

O presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), tomou providências nos últimos dias para tentar escapar ileso do bombardeio de denúncias que ameaçam seu mandato. Conseguiu que seu partido escalasse para o Conselho de Ética do Senado um time de parlamentares de absoluta confiança. O novo presidente do Conselho é nada mais, nada menos que o senador Gilberto Mestrinho (PMDB-AM), o maior aliado de Jader no Congresso e que assumiu disposto a não levar em frente a apuração da enxurrada de acusações. “O Senado não é uma delegacia de polícia. Só quem pode cassar um senador é o povo, nas eleições. Punir senadores não é função do Senado”, abriu o jogo Mestrinho. Numa atitude inédita no Senado, ele já aproveitou o discurso de posse no Conselho para tentar defender-se das denúncias que vem enfrentando durante quatro décadas de carreira política no Norte do País. “Dizem que fui cassado por corrupção quando era governador do Amazonas. Quero esclarecer que fui cassado em 9 de abril de 1964 quando era deputado federal por Roraima”, disse Mestrinho, para surpresa de pelo menos cinco conselheiros que protestaram contra sua eleição. Além dele, Jader conta antecipadamente com o apoio dos senadores peemedebistas Carlos Bezerra (MT), Nabor Júnior (AC) e João Alberto (MA) para barrar qualquer investigação no Conselho. “Está claro que o PMDB errou nesta escalação”, censurou o senador Paulo Hartung (PPS-ES).

A tropa de choque de Jader logo saiu a campo. Antes mesmo de assumir o cargo, Mestrinho pediu a assessores um parecer afirmando que o Conselho de Ética não pode cassar senadores por falcatruas cometidas antes de assumir o mandato. Tudo sob medida para impedir uma investigação sobre as principais denúncias contra o amigo. Jader também investiu com sucesso na frente de batalha fora do Congresso e está sendo investigado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Ele ajudou na recondução pela quarta vez consecutiva de Geraldo Brindeiro ao comando da Procuradoria-Geral da República. Brindeiro é o responsável pelo arquivamento dos processos envolvendo Jader no escândalo do Banco do Estado do Pará (Banpará) e na desapropriação fraudulenta no Polígono dos Castanhais. Na manhã da terça-feira 26, durante sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, um constrangido Brindeiro sofreu uma saraivada de críticas de senadores que o acusavam de ser contumaz engavetador de processos contra políticos. “É muito grave o fato de que há 33 senadores e 194 deputados com processos em suas gavetas”, disparou o senador Pedro Simon (PMDB-RS).

Mesmo com tantos ataques, a Comissão aprovou a indicação de Brindeiro. Um dia depois, o verdadeiro exército de senadores, satisfeitos com a conduta do procurador, confirmou em plenário sua nomeação para mais um mandato de dois anos na Procuradoria-Geral da República. Depois da votação, no salão de Cafezinho contíguo ao plenário, Ney Suassuna (PMDB-PB) reuniu um grupo de senadores para uma confraternização com Brindeiro em torno de uma farta mesa de queijos e vinhos. Alguns deles certamente estavam brindando a própria impunidade.

Andrei Meireles