O físico César Lattes, que morreu de parada cardíaca na terça-feira 8, aos 80 anos, em Campinas (SP), já mostrava na infância o gosto pela experimentação e a dose de irreverência de quem colocou o Brasil na história da física mundial. No colégio Dante Alighieri, em São Paulo, onde estudava em sistema de internato, o menino Cesare Mansueto Giulio Lattes fez um monte de pólvora e gostosamente bateu forte com o pé. A explosão soou ensurdecedora no pátio da escola. Depois de um puxão de orelha, foi proibido de sair nas férias. Só que não o aguentaram por lá depois que ele resolveu quebrar o tédio ateando fogo num vazamento de óleo no aquecedor do banheiro.

Lattes nasceu em julho de 1924, em Curitiba. Aos 19 anos formou-se em física pela Universidade de São Paulo (USP) e aos 23 se tornou uma referência em física nuclear ao estabelecer evidências da existência do méson pi (partícula subatômica que impede o núcleo do átomo de se separar e explica o que prende prótons e nêutrons uns aos outros, já que eles não podem se atrair eletricamente). Nessa ocasião, ele já trabalhava com Giuseppe Occhialini e Cecil Powell, na Universidade de Bristol, na Inglaterra. O méson pi havia sido previsto em 1935 pelo físico japonês Hideki Yukawa (1907-1981), mas foi Lattes que, em 1947, mostrou ao mundo que ele existia, marcando o início de uma revisão dos conceitos sobre a estrutura da matéria. Ele montou um laboratório a 5,5 mil metros de altitude no Monte Chacaltaya, na Bolívia, e expôs várias chapas fotográficas aos raios cósmicos. Pelos rastros lá deixados por eles, pôde determinar a existência do méson pi.

Eleito por ISTOÉ O Brasileiro do Século na categoria científica, em 1999, Lattes foi fundamental para a compreensão dos mecanismos que regem a matéria e a formação do Universo. Com o seu prestígio, fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro. Ajudou a formar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, e, mais tarde, o núcleo de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde lecionou até 1969. Único físico brasileiro citado na Enciclopédia britânica, ele passou duas vezes de raspão pelo Prêmio Nobel, que, em 1950, foi para Cecil Powell, chefe do laboratório onde ele trabalhava. Sua genialidade só tem comparação com a do físico pernambucano Mario Schenberg, falecido em 1990.

Bem-humorado e amante da natureza, Lattes não dispensava a companhia de seus cães nem quando dava palestras na Unicamp. Até o fim da vida, gostava de dizer que era um professor, e não um físico. Criticava Albert Einstein, afirmando que o mérito do pai da relatividade foi fazer propaganda de conceitos que já existiam. Dizia preferir a intuição à lógica, porque pela lógica se pode deduzir tudo, mas, se a premissa estiver errada, tudo estará errado. E ela vem da intuição. Não via contradição entre ser cientista e religioso e acreditava que a realidade tinha várias dimensões, a muitas das quais não temos acesso. Dentro de seus conceitos, é possível que a parada cardíaca que o tirou do mundo objetivo o leve agora a investigar uma dessas outras partes do Universo.

Obra inédita Uma tese de Lattes engavetada desde 1966 vai virar livro. A obra sobre a parceria entre Brasil e Japão no estudo de raios cósmicos será lançada em 2005, como parte das comemorações do Ano Internacional da Física