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Há alguns anos o Brasil sofreu uma overdose de filmes e séries sobre favelas. Depois de décadas em que as chamadas comunidades não tinham vez nas telas, com o sucesso arrasador de “Cidade de Deus”, morros, escadas sinuosas, ruas apertadas, tiros, sangue escorrendo por atacado, antenas e gatos de TV a cabo invadiram roteiros e sets de forma implacável. Algum tempo depois, nem os próprios moradores de periferia aguentavam mais se ver ao lado dos invariáveis personagens do “traficante armado até os dentes, mas que ainda pode voltar a ser do bem”, da “gatinha com corpão que dança funk e sonha com uma vida melhor” ou do “casal honesto que a duras penas luta para criar seus filhos longe do tráfico”.

Com a chegada das comédias classe média em que Leandro Hassoun e companhia reabilitaram o mundo dos shoppings, da zona sul carioca e dos cruzeiros marítimos, as favelas puderam descansar a imagem por algum tempo.

O filme “Na Quebrada”, dirigido por Fernando Andrade, retoma as histórias e os dramas das periferias brasileiras. Se por um lado não consegue passar totalmente ao largo de situações e figuras-chave descritas acima, traz alguns elementos que instigam e o colocam num lugar especial. Para começar, consegue um nível de realismo e de sofisticação na execução de cenas de violência e, muito especialmente, nos diálogos e situações vividos numa cadeia, que pouquíssimas vezes foram vistos no cinema por essas plagas. Deixando de lado, claro, o intervalo de tempo que separa as duas obras, mesmo com a assessoria de gente como o rapper Sabotage e outras figuras muito próximas do universo dos presídios e das periferias, em trabalhos como “Carandiru” por exemplo, o que se via eram grandes interpretações de presos, feitas por atores como Milhem Cortaz, Rodrigo Santoro e Gero Camilo.

Em “Na Quebrada”, porém, quem faz papel de preso são presos. E isso muda tudo. Nenhum roteirista, preparador de elenco ou maquiador do planeta seria capaz de recriar olhares, diálogos, expressões, jargões, respirações e carrancas que se veem ali.

Além disso, o filme de Andrade, feito para reviver histórias reais de alunos formados nos dez anos do Instituto Criar, fundado por seu meio-irmão Luciano Huck, faz um recorte interessante. Ele não retrata adolescentes começando a descobrir o mundo, como a incrível dupla Acerola e Laranjinha da série/filme “Cidade dos Homens”, nem jovens já criados, como os traficantes de “Tropa de Elite”. A lente aqui, aponta para outros tipos de aviões. Aqueles que estão colocados na pista, prontos para decolar. São jovens na faixa dos 16 aos 20 e poucos anos que começam a desenhar um plano de voo para suas vidas. E isso dá uma originalidade notável às histórias.

O filme “Na Quebrada” merece ser visto. Pelas cenas fortes e bem realizadas, pelas atuações avassaladoras de detentos e ex-presidiários de um grupo de teatro criado numa cadeia, pela revelação de Jorge Dias, inequivocadamente filho do rapper Mano Brown (visto na pré-estreia desempenhando o papel de pai coruja enternecido, a poucas cadeiras do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin), e de sua irmã Domenica e de atores profissionais como Gero Camilo (de novo genial) e Cláudio Jaborandy.

Mas o filme “Na Quebrada” precisa ser visto. Porque nunca é demais ver de perto e com nitidez o tamanho da vala que separa o Brasil real daquele com o qual se sonha.

A coluna de Paulo Lima, fundador da editora Trip, é publicada quinzenalmente