Capítulo IV

A Estigmatização
de Padre Pio: História e
Testemunhos

A primeira notícia dos estigmas de Padre Pio remonta a uma carta de 8 de setembro de 1911, endereçada ao Padre Benedetto de San Marco in Lamis. Na missiva, o Padre Pio escreve:

Depois, ontem à noite, sucedeu-me uma coisa que não sei nem explicar nem compreender. No meio da palma das mãos apareceu um pouco de vermelhidão, mais ou menos com a forma de uma moeda, acompanhada também por uma dor forte e aguda no meio daquela vermelhidão. Essa dor era mais sensível no meio da mão esquerda, de tal maneira que ainda perdura. Também debaixo dos pés sinto um pouco de dor. Esse fenômeno já quase há um ano se vai repetindo, mas já fazia algum tempo que havia cessado. Contudo, não se inquiete se só agora lho digo; porque me deixei vencer sempre por aquela maldita vergonha. Também agora se soubesse quanta violência tive de fazer-me para dizer-lho!

O fenômeno continua a repetir-se e, alguns meses depois, em 21 de março de 1912, o Padre Pio escreve ao Padre Agostino Daniele de San Marco in Lamis: “De quinta-feira à noite até sábado, como também na terça-feira, é uma tragédia dolorosa para mim. O coração, as mãos e os pés parecem-me que são traspassados por uma espada, tamanha é a dor que sinto”.

Inicialmente, os seus pais espirituais não aprofundam a questão. Depois, no dia 30 de setembro de 1915, o Padre Agostino escreve ao Padre Pio: “Diz-me: 1º) Desde quando Jesus começou a favorecer-te com as suas visões celestes? 2°) Concedeu-te o dom inefável dos seus santos estigmas, embora invisíveis? Fez-te provar e quantas vezes sua coroação de espinhos e sua flagelação?”.

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No dia 4 de outubro, o Padre Pio envia a sua resposta, mas não responde às perguntas. Prevalece o escondimento e a necessidade de manter em segredo o que vive:

Perdoai-me se não dou resposta àquelas interrogações que me fizestes na vossa última [carta]. Para dizer-vos a verdade, sinto uma grande repugnância em escrever aquelas coisas. Não se poderia, ó pai/padre, por agora, adiar a resposta a essas vossas perguntas?

Mas o Padre Agostino não estava nada disposto a deixar passar em vão as suas iniciativas e, alguns dias depois, em 7 de outubro, voltou a escrever-lhe:

Por fim, pedes-me que adie as respostas às minhas perguntas. Para dizer a verdade, sinto no meu coração que devo insistir: creio que essa insistência não desagradará a Jesus nem tu deves ter repugnância em obedecer: porque, não duvides, tudo será para glória de Deus e nossa salvação. Responde-me também com uma [carta] confidencial: Jesus far-me-á manter segredo; tu sabes que eu nunca falei, a não ser a almas, às quais Jesus quer e quando ele o quiser. Portanto, por que tanta relutância? Deves ser sincero, deves dizer-me tudo: antes ora a Jesus que te faça desvendar-me também alguma outra coisa que eu não sei ou não me lembro de interrogar-te.

O Padre Pio prepara-se para obedecer, mas o seu texto, datado de 10 de outubro de 1915, é revelador do afastamento e da repugnância com que fala. Eis as suas palavras:

Na vossa resoluta vontade de saber ou, melhor, de receber uma resposta àquelas vossas interrogações, não posso deixar de reconhecer a vontade expressa de Deus e com mão tremente e coração trasbordante de dor, ignorando-se a verdadeira causa, disponho-me a obedecer-vos. A vossa primeira pergunta é que quereis saber desde quando Jesus começou a favorecer a sua pobre criatura com as suas visões celestes. Se é que consigo adivinhar, elas devem ter começado não muito depois do noviciado [ano de 1903]. A segunda pergunta é se me concedeu o dom inefável dos seus santos estigmas. A isso deve-se responder afirmativamente, e a primeira vez que Jesus quis dignificar essa sua pobre criatura com esse favor, tais estigmas eram visíveis, especialmente numa mão, e já que essa alma com tal fenômeno ficou bastante aterrorizada, orou ao Senhor para que lhe retirasse esse fenômeno visível. Desde que isso aconteceu, nunca mais apareceram; contudo, desaparecidas as feridas, nem por isso desapareceu a dor agudíssima que se faz sentir, especialmente em algumas circunstâncias e em determinados dias. A vossa terceira e última pergunta é se o Senhor ter-me-ia feito experimentar, e quantas vezes, a sua coroação de espinhos e a sua flagelação. Também a resposta a essa última pergunta deve ser afirmativa; acerca do número, eu não saberia determiná-lo, só consigo dizer que esta alma há vários anos padece disso e quase uma vez por semana. Parece-me ter-vos obedecido, não é verdade?

As notícias relativas a dons místicos particulares são retomadas em agosto de 1918, ao acabar a Primeira Guerra Mundial. Antes dos sinais da Paixão, o Padre Pio recebe a transverberação. Em 21 de agosto, ao escrever ao Padre Benedetto, conta acerca do seu  superlativo martírio”:

Por força dessa [obediência], induzo-me a manifestar-vos o que aconteceu em mim desde o dia 5 à noite e durante todo o dia 6 do mês corrente. Não consigo dizer-vos o que aconteceu nesse período de superlativo martírio. Estava eu a confessar os nossos rapazes, na noite do dia 5, quando repentinamente fiquei aterrorizado ao ver uma personagem celeste que se me apresenta diante dos olhos da minha inteligência. Segurava na mão um tipo de instrumento, semelhante a uma longuíssima lâmina de ferro, com uma ponta bem afiada e de onde parecia sair fogo. Ver isso e observar a dita personagem enterrar com toda a violência aquele instrumento na alma, foi tudo uma coisa só. A custo soltei um lamento, sentia-me morrer. Disse ao rapaz que se retirasse, porque me sentia mal e já não tinha força para continuar. Esse martírio durou, sem interrupção, até a manhã do dia 7. O que sofri nesse período tão doloroso, não sei dizer. Até as vísceras eu via serem arrancadas e esticadas com aquele instrumento, e tudo era devassado. Desse dia para cá, fiquei ferido de morte. Sinto no mais íntimo da alma uma ferida que está sempre aberta, que me faz sofrer assiduamente.

O fenômeno místico não se conclui imediatamente. O Padre Pio continua a sofrer e, dali a alguns dias, no dia 5 de setembro, escreve ao Padre Benedetto:

Vejo-me submerso por um oceano de fogo, a ferida, que me foi reaberta, sangra e sangra sempre. Por si só, ela bastaria para dar-me a morte mais de mil vezes. Ó meu Deus, e por que não morro? Ou não vês que a própria vida para a alma que tu chagaste é o seu tormento? És tão cruel que permaneças surdo aos clamores de quem sofre e não quer confortos? Mas que digo?… Perdoai-me, padre, estou fora de mim, não sei o que digo a mim mesmo. O excesso da dor que me causa a ferida que está sempre aberta torna-me furibundo contra o meu querer, faz-me sair ficar fora de mim e leva-me ao delírio, e sinto-me impotente para resistir.

Estamos no vértice desse itinerário místico. No dia 20 de setembro, acontece um fato que marca para sempre a vida do frade  estigmatizado. Mesmo na dramaticidade de tudo o que acontece, o Padre Pio é avesso a falar disso. Assim, de modo muito vago, no dia 17 de outubro, escreveu ao Padre Benedetto:


Quem me libertará de mim mesmo? Quem me tirará para fora desse corpo de morte? Quem me estenderá a mão para que eu não seja envolvido e tragado pelo vasto e profundo oceano? Será necessário que eu me resigne a ser envolvido pela tempestade que cresce cada vez mais? Será necessário que eu pronuncie o fiat ao olhar para aquela misteriosa personagem que me chagou todo e não desiste da dura, áspera, aguda e penetrante operação, e que nem dá tempo ao tempo para que cicatrizem as chagas antigas, uma vez que já sobre essas vem abrir outras novas com suplício infinito da pobre vítima? Por amor de Deus, meu padre, vinde em meu auxílio, por caridade! Todo o meu interior “chove” sangue e, por diversas vezes, os meus olhos são obrigados a resignarse a vê-lo escorrer também para fora. Por amor de Deus! Cesse em mim esse suplício, essa condenação, essa humilhação, essa confusão! O meu ânimo não consegue poder e saber resistir.

Abertas, pela misteriosa personagem, “novas chagas” sobre “chagas antigas” são um fato demasiado original para que o Padre Benedetto não o receba com espanto. Aliás, o seu filho espiritual lamenta que “chova sangue” do seu interior e até do exterior da sua pessoa. A condenação, a humilhação e a confusão que esses fenômenos lhe provocam são para o seu diretor espiritual motivo urgente para intervir.
Por isso, no dia seguinte, com tom paternal, mas simultaneamente de ordem, o Padre Benedetto escreve:

 Meu filho, diz-me tudo e claramente, e não por alusões. Qual é a ação da personagem? De onde escorre o sangue e quantas vezes ao dia ou por semana? Que aconteceu às mãos e aos pés? E como? Quero saber tudo de uma ponta à outra e por santa obediência.

No dia 22 de outubro de 1918, o Padre Pio responde-lhe:

O que vos direi a propósito do que me perguntais a respeito de que modo aconteceu a minha crucifixão? Meu Deus, que confusão e que humilhação experimento em ter de manifestar o que tu operaste nesta tua mesquinha criatura! Estava eu no coro, na manhã do dia 20 do mês passado, depois da celebração da Santa Missa, quando fui surpreendido pelo repouso, semelhante a um doce sono. Todos os sentidos internos e externos, bem como as próprias faculdades da alma, se encontraram numa quietude indescritível. Em tudo isso, houve silêncio total à minha volta e dentro de mim; repentinamente, sucedeu-se uma grande paz e abandono à completa privação total e uma trégua na própria ruína. Tudo isso aconteceu como num relâmpago. E, enquanto tal fato se ia operando, vi-me diante de uma misteriosa personagem, semelhante à vista na noite de 5 de agosto, que se diferenciava dela somente por lhe escorrer sangue das mãos, dos pés e do peito. A sua vista aterrorizou-me; eu não saberia dizer-vos o que sentia naquele instante. Sentia-me morrer e estaria morto, se o Senhor não tivesse intervindo para sustentar o coração que eu sentia saltar-me do peito. A visão da personagem retira-se e apercebi-me de que mãos, pés e peito estavam perfurados e expeliam sangue. Imaginai o tormento que então experimentei e que continuamente experimento quase todos os dias. A ferida do coração verte sangue assiduamente, em especial de quintafeira à noite até sábado. Meu pai/padre,* morro de dor pelo suplício e pela confusão subsequente que sinto no íntimo da alma. Temo morrer exangue, se o Senhor não ouvir os gemidos do meu pobre coração e não retirar de mim isso. Jesus, que é tão bom, far-me-á essa graça? Ao menos, tirará de mim essa confusão que experimento por causa desses sinais externos? Para ele levantarei forte a minha voz e não desistirei de implorar-lhe que, pela sua misericórdia, retire de mim não o suplício, não a dor, porque o vejo impossível e sinto que quer inebriar-me de dor, mas esses sinais externos que são para mim uma confusão e uma humilhação indescritível e insustentável.

O Padre Benedetto deseja ver isso claramente. No fim do mês de fevereiro, vai ter com o Padre Pio, “durante alguns dias”, em San Giovanni Rotondo e verifica pessoalmente o acontecido. 12 No dia 3 de março de 1919, escrevendo ao Padre Agostino, conta:  

Nele não há manchas ou marcas, mas verdadeiras chagas perfurantes nas mãos e nos pés. Depois, observei a do peito: um verdadeiro rasgo que verte continuamente ou sangue ou humor sanguíneo. À sexta-feira, é sangue. Vi que ele mal se aguentava de pé; mas deixei-o, pois podia celebrar; e quando diz missa o dom é exposto ao público, porque tem de manter as mãos levantadas e nuas.

No dia 24 de abril de 1919, o Padre Benedetto informa o ministro-geral da ordem:

Revmo. padre geral, até agora eu me tinha calado por um certo sentimento de reserva que nasce espontaneamente em semelhantes circunstâncias e pela delicadeza do ministério espiritual, que aconselha a esconder os dons do Grande Rei. […] Nos inícios de março quis ir pessoalmente verificar de visu o que haveria. Era sexta-feira e, logo que chegou a noite, observei-lhe comodamente as mãos: estavam perfuradas e sangrando; no peito, vi um rasgão de vários centímetros úmido de sangue e o pano que lhe era aplicado – peguei nele – molhado em água e sangue.

No dia 28 de novembro de 1919, ao escrever ao capuchinho francês, Padre Edouard d’Alençon, eminente estudioso do franciscanismo, o novo ministro da província capuchinha, Padre Pietro di Ischitella, oferece uma breve descrição dos estigmas:

Em suma. Na palma das mãos observa-se uma crosta de cor vermelha escura e arredondada, com a largura de uma moeda, com contornos nítidos, parcialmente destacada da cútis. Uma crosta idêntica, mas um pouco mais pequena, encontra-se nas costas das mãos. Semelhantemente, na planta e no peito dos pés. No tórax, à esquerda, observa-se uma espécie de cruz, cuja haste mais longa, disposta obliquamente, vai da quinta à nona costela, por cerca de seis centímetros, enquanto a haste transversal mede mais ou menos a metade da maior. A pele, de cor vermelha acastanhada, está quase sempre sangrando, de modo que ensopa diversos panos por dia. A impressão desses sinais aconteceu, precisamente, na tarde de 20 de setembro de 191815 e até agora conservam-se quase inalterados.

Dentre os testemunhos desse período distingue-se o de Dom Costa, bispo de Melfi e Rampolla, que, em setembro de 1919, escreve ao ministro da província, Padre Pietro de Ischitella:


Embora eu tenha vindo até aqui não já com o espírito de investigação, mas simplesmente como simples fiel, movido pelo desejo de me edificar e implorar graças para mim, para os meus queridos e para a minha diocese, não pude, aliás, deixar de observar, de interrogar e de, assim, fazer uma ideia da personalidade do Padre Pio. As minhas impressões reduzem-se a uma única, isto é, falei e conversei com um santo. Os estigmas, nos quais pude dar quentes beijos e que, depois dos exames de pessoas competentes, não se podem razoavelmente pôr em dúvida, são bocas suficientemente eloquentes, como as que representam o selo do amor, que Deus estampa naqueles que lhe são mais caros e mais intimamente unidos pela fé viva e pela caridade ardente.


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