Está mofando em alguma gaveta do Ministério das Relações Exteriores e do Palácio do Planalto um relatório confidencial que pode definir o destino da vida de 23 cidadãos brasileiros – três deles índios ianomâmis e os demais garimpeiros – presos na Venezuela. Condenados, em média, a cinco anos de cadeia, os presos cumprem pena no Comando Geral de Polícia Venezuelana, na cidade de Puerto Ayacucho, a cerca de 900 quilômetros da fronteira com o Brasil. Eles são acusados de “crimes contra o meio ambiente”, eufemismo usado para designar a mineração ilegal. Para tentar evitar um desgaste diplomático internacional, o Itamaraty vem mantendo o caso numa espécie de segredo de Justiça. ISTOÉ teve acesso a este relatório confidencial, datado de 1º de setembro do ano passado, em que o embaixador brasileiro na Venezuela, João Carlos de Souza-Gomes, relata a situação em que se encontram esses brasileiros. No documento de cinco páginas, nº OF92129Z, o diplomata diz: “Funcionários do Itamaraty em visita ao interior do presídio ficaram estarrecidos com a precaríssima situação do mesmo, extremamente sujo e promíscuo.” O embaixador brasileiro pede a seus pares, no Brasil, que o assunto seja tratado num foro apropriado, antes que o fato se torne público de forma negativa na imprensa brasileira. “Que a matéria se restrinja à esfera consular e jurídica, evitando-se, assim, a extrapolação indesejada no plano político”, alerta. A mensagem do embaixador ao Itamaraty destaca em especial a situação dos três índios ianomâmis, que deveriam se beneficiar da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dá foro privilegiado aos índios.

OEA – A situação, que se arrasta há dez meses, tende a piorar. “Um dos índios presos, de 40 anos, está à beira da morte”, diz Hélcio Pacheco, do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes). Diante da falta de interesse demonstrada pelo governo federal em defender cidadãos brasileiros detidos na Venezuela, Pacheco resolveu encaminhar a denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA). “Falta agilidade no Brasil para atuar em casos como este”, acusa. Se o Ministério das Relações Exteriores tem se destacado como competente negociador diante de acordos comerciais, os diplomatas, diante de causas humanitárias como esta, agem como camelôs. “Cansei de solicitar ao Itamaraty que incluísse esse grave fato na agenda do último encontro – 14 de fevereiro de 2005 – entre os presidentes Lula e Hugo Chávez, mas não obtive sucesso. Disseram-me que a agenda era econômica”, afirma o deputado Francisco Rodrigues (PFL/RR). O parlamentar, que esteve em Puerto Ayacucho no final do
ano passado acompanhando de perto a condição dos brasileiros presos, confirma que a situação por trás das grades é a mesma descrita pelo embaixador na correspondência confidencial. “É um absurdo que seres humanos vivam daquele jeito”, diz Rodrigues.

A situação não é nenhuma novidade para Hélcio Pacheco, que é conselheiro da ONG Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). “Esse é o reflexo
da política indigenista do governo federal”, ataca. Na mesma direção vai o discurso do parlamentar de Roraima. “Encaminhei no final do ano passado esta denúncia ao governo federal”, garante o deputado.

Por telefone, a reportagem de ISTOÉ falou com os brasileiros presos no pavilhão dos sentenciados no presídio em Puerto Ayacucho. Eles confirmam as denúncias de que estão sendo tratados como bichos. “Isso aqui é um depósito humano”, atesta José Gomes Neto, 45 anos, um dos condenados. O garimpeiro afirma que, na noite em que foram presos, eles estavam numa donga (tipo de embarcação indígena), no rio Orinoco. O local é o caminho que os garimpeiros utilizam para entrar na mina de ouro de serra de Yacapanã, reserva florestal da Venezuela. “Estávamos com 25 dias de viagem e já tínhamos até negociado o suborno com a Guarda Nacional”, lembra. “Fomos presos como bodes expiatórios”, diz o garimpeiro, garantindo que o grupo já teria gasto cerca de R$ 100 mil para tentar se livrar das grades. “Demos dinheiro a juízes, advogados e membros da corte para tentarmos sair. Eles pegaram nosso dinheiro e sumiram”, diz Neto.

Abaixo-assinado – Os garimpeiros condenados assumem discurso único quando o assunto é a condenação dos índios. “Eles só faziam o serviço de pilotar a donga”, afirma Neto. Na verdade, o serviço dos ianomâmis da região é contratado pelos garimpeiros devido à grande experiência que eles têm em pilotar essas embarcações nas corredeiras do Orinoco e seus afluentes. “Vários indígenas também desenvolvem o trabalho de mineração”, conta o garimpeiro condenado.

A situação não é nada fácil para os brasileiros condenados, pois na Venezuela crime contra meio ambiente é considerado hediondo – o que significa que eles não podem recorrer a benefícios legais, como habeas-corpus ou redução de pena. Tanto que um abaixo-assinado para que o governo da Venezuela transfira os brasileiros para cumprir a pena no Brasil está sendo feito em Boa Vista, capital de Roraima. Coordenado pelo radialista Márcio Junqueira, da Rádio Equatorial, o movimento tem recolhido assinaturas da população e elas deverão ser encaminhadas ao presidente venezuelano Hugo Chávez nesta semana. “Já temos 13 mil assinaturas”, conta o radialista. “Já que o presidente Lula ignora os brasileiros detidos, resolvemos encampar esta luta”, alfineta.

Procurado na sexta-feira 11 pela reportagem de ISTOÉ, o embaixador Souza-Gomes inicialmente disse que não se recordava do relatório. Depois de ter recebido da revista uma cópia do material, o embaixador declarou que naquele documento ele propôs um acordo de transferência de presos. “Fiz a minha parte”, disse o diplomata. Mas ele admitiu que não esteve pessoalmente no presídio e, portanto, não poderia falar da atual situação dos condenados.

O descaso da burocracia do Itamaraty com esse descalabro é compartilhado por algumas das ONGs que em tese cuidam dos ianomâmis. Das quatro que ISTOÉ consultou, três nem sequer tinham conhecimento do que está acontecendo com os índios na Venezuela. Uma delas, inclusive, alegou que não poderia responder porque sua principal responsável estava fazendo um curso nos Estados Unidos.

Se depender da atuação de alguns diplomatas e “ongueiros”, os ianomâmis conti-
nuarão tendo vastas reservas, mas permanecerão no abandono e no esquecimento.