Com 63,9% da população vivendo abaixo da linha de pobreza, a Bolívia é o país mais pobre da América do Sul, embora esteja sentado sobre a segunda maior reserva de gás do continente (atrás apenas da Venezuela). Consciente da necessidade de romper esse impasse, o presidente boliviano, Carlos Mesa, disse a ISTOÉ numa entrevista em setembro de 2004: “Temos que dizer ao povo boliviano que nosso gás é mais do que suficiente para o consumo e, sendo assim, podemos exportar. Mas precisamos instalar, com urgência, um sistema de gás domiciliar para que realmente a população se beneficie do produto que tem.” Mesa assumiu em outubro de 2003, depois que o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que queria vender o gás para os Estados Unidos, foi forçado a abandonar o governo em meio a violentos protestos populares. Em julho de 2004, o presidente Mesa, com o apoio do líder indígena cocaleiro Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), saiu vitorioso em um plebiscito em que os bolivianos se declaravam favoráveis à exportação de gás. Mas Mesa e Morales passaram a divergir sobre pontos do referendo. O MAS e o Movimento Indígena Pachacútec queriam que todo o gás exportado pagasse royalties no valor de 50%. Já o presidente propunha 18%, acrescidos de um imposto de 32% a ser estabelecido a longo prazo. Morales não demonstrou disposição para negociações e passou a articular protestos, bloqueando pelo menos sete principais artérias que ligam a capital La Paz ao resto do país. Com as greves das últimas duas semanas, a economia boliviana chegou a perder US$ 3,8 milhões diariamente. No domingo 6, Mesa virou a mesa e foi à televisão denunciar o “assédio de um bloqueio nacional”, anunciando que apresentaria sua renúncia ao Congresso. Disse que só voltaria atrás se pudesse governar efetivamente. Não foi, como muitos chegaram a pensar, uma tentativa de Mesa de ser o Jânio Quadros que deu certo, porque o presidente fez tudo dentro da legalidade constitucional. De qualquer maneira, foi uma jogada bastante arriscada, mas que acabou funcionando.

Além do Congresso e das Forças Armadas, o presidente boliviano ganhou respaldo internacional. Os países do Mercosul e da Comunidade Andina emitiram um comunicado de apoio a Mesa. O presidente brasileiro,
Luiz Inácio Lula da Silva – que em 2003
mediou o acordo que permitiu a saída de
Lozada – ligou para o presidente boliviano
para manifestar solidariedade.

Dois dias depois, na terça-feira 8, reunido durante tensas e longas horas no sexto andar do Banco Central, o Congresso boliviano rejeitou por unanimidade a renúncia do presidente. “A Presidência de Mesa é um mal necessário”, afirmou o líder sindical Roberto de la Cruz. Afinal, se Mesa renunciasse o cargo seria ocupado pelo presidente do Senado, Hormando Vaca Díez, um político acusado de corrupção, o que provavelmente acirraria ainda mais os ânimos dos bolivianos. Cedendo ao presidente, os 130 deputados e 27 senadores assinaram um documento de governabilidade que propõe a revisão do valor dos royalties – a ser definido posterior-
mente – da lei sobre a exploração de gás e petróleo (Lei de Hidrocarburetos), além de reiterar o respeito aos contratos internacionais firmados pela Bolívia. O documento propõe também um referendo sobre a autonomia de nove departamentos (regiões) e eleições diretas para governadores, hoje nomeados pelo poder central. O MAS de Morales e o movimento comunitário de El Alto (epicentro dos conflitos) rejeitaram a renúncia do presidente, mas se recusaram a assinar o acordo. Mesmo assim, Mesa chamou Morales e outros sindicalistas para a mesa de negociações. Na quinta-feira 10, as conversações resultaram num retumbante fracasso.

O presidente argumenta que seria inviável elevar os royalties para 50%, porque, entre outras coisas, essa medida levaria o país à barra dos tribunais internacionais. O aumento certamente afugentaria também investimentos estrangeiros, sem os quais a Bolívia não conseguiria sobreviver. E, nessa equação, o Brasil, que no ano passado comprou US$ 713 milhões de gás natural boliviano,
seria um dos principais prejudicados pelo aumento dos royalties. A Petrobras é atualmente a maior empresa estrangeira na Bolívia e nos últimos cinco anos investiu cerca de US$ 1,5 bilhão
no país. Apesar de tudo, a empresa não acredita que a crise vá alterar seus
planos para a Bolívia.

Mas a atuação das empresas estrangeiras na Bolívia, na maioria das vezes, não é uma questão meramente ideológica, pois afeta diretamente o cotidiano dos cidadãos, como mostra o exemplo da água em El Alto, cidade-dormitório dos trabalhadores de La Paz. A Federação de Associações de Bairro (Fejuve) alega que a empresa francesa Suez Lyonnaise des Eaux não ampliou a rede de esgoto e água. Abel Mamani, presidente da Fejuve e feroz opositor de Mesa, prega a expulsão da companhia francesa. “No caso da água, o presidente reconheceu que a empresa não cumpriu o contrato e anulou a concessão. Pedimos apenas o cumprimento do contrato”, disse Mamani. Em janeiro, bloqueios na capital fizeram com que Mesa aceitasse a desapropriação, mas a medida ainda não entrou em vigor.

Rebelião em Sta. Cruz – Para piorar a situação, a região de Santa Cruz de La Sierra, a mais rica do país, está há três meses em estado de guerra com o poder central. Tudo começou em dezembro, quando o governo aumentou em 15% o preço do óleo diesel. Em represália, o Movimento Cívico Crucenho, agremiação de empresários e sindicatos de Santa Cruz de La Sierra, expulsou o governador nomeado pelo presi-
dente e proclamou a autonomia regional. Para evitar uma crise maior, Mesa acabou aceitando a medida, mas foi obrigado a conceder autonomia para os outras regiões, o que deverá ser confirmado por uma Assembléia Constituinte, a ser convocada em junho. Até lá, pelo menos, Carlos Mesa ganhou algum tempo para respirar.