03/10/2014 - 19:01
Ulysses Guimarães chegou às eleições de 1989 sem o mesmo prestígio que conquistara ao longo da bela, porém derrotada, campanha pelas eleições diretas para presidente de cinco anos antes. Após ver a emenda Dante de Oliveira ser derrotada no Congresso Nacional, Ulysses se transformou em uma espécie de símbolo maior das lutas pela redemocratização plena do país naquela segunda metade dos anos 80. Mas, já quase na virada da década, a proximidade excessiva com José Sarney e suas políticas econômicas desastrosas e a costumeira dificuldade em unir o PMDB lhe cobrariam um preço alto. No fim de junho, a quatro meses da eleição, a camapanha do "Senhor Diretas" não decolara e, rapidamente, Ulysses passou a gastar mais tempo tentando remendar o seu partido do que buscando votos. Aos 72 anos, Ulysses transformara-se em uma sombra do líder da década anterior. Chegou ao final da campanha sem apoio, quase desacreditado por seus pares. Ainda assim, conquistou mais de três milhões de votos e terminou como o sétimo candidato a presidente mais votado. Esta reportagem, publicada no fim de junho de 1989, conta o momento crítico da campanha de Ulysses e como ele acreditava que seria possível reverter o fracasso que se anunciava
Político dos desafios, Ulysses Guimarães enfrenta há dois meses o maior deles, desde que se lançou candidato a presidente da República: precisa viabilizar, antes de tudo, a sua tentativa dentro do próprio partido que presidiu durante 28 anos, o PMDB. Na quarta-feira, 21, Ulysses atirou fora o estilingue que os publicitários de sua campanha haviam recomendado como uma boa imagem eleitoral exatamente para não atiçar ainda mais as contradições internas dos peemedebistas. A maioria não gostava nem um pouco do símbolo encontrado para a campanha. “É coisa de moleque”, comentava o vice-governador paulista Almino Afonso. “É um símbolo superado para a época do raio laser", atacava o deputado paranaense Hélio Duque.
Juntando os fios
Terça-feira, 20, na Assembléia de São Paulo, com Almino
Até mesmo dona Mora, a dedicada esposa e companheira de batalha eleitoral que trabalha a candidatura na área feminina, havia apontado, no estilingue, um defeito básico: “E antiecológico, porque serve para matar passarinho.” Como as discussões aumentavam ainda mais o ambiente de que se armava em Brasília em torno do de campanha ulyssista, o velho líder simplesmente preferiu começar tudo de novo: mandou retirar os outdoors de estilingue que começavam a aparecer em São Paulo e marcou nova reunião com sua equipe de publicitários para a próxima terça-feira, quando espera, encontrar uma marca definitiva. Até lá, terá, porém, de administrar outras tantas dificuldades internas da campanha.
Há gente, no chamado Novo PMDB, que não está apreciando nem um pouco a articulação nacional, a cargo do ex-ministro Renato Archer, um dileto amigo de Ulysses. Dizem que Archer não os ouve para nada, não faz reuniões, não discute, não usa a técnica consagrada do brainstorming. Que ele decide tudo sozinho, ou em conversas de pé de ouvido com Ulysses e mais um grupo privilegiado de assessores políticos e publicitários. O deputado Dante de Oliveira chegou a sugerir que Ulysses deveria “prestar contas” do que iria dizer a Jô Soares na gravação do seu programa de televisão, na noite da terça-feira, 20. Ulysses, com bom humor, respondeu cunhando uma frase: “Esse rapaz está trocando as bolas, porque eu entrei na igreja com ele, na condição de padrinho e não de noiva.” (Referia-se ao fato de ser padrinho de casamento de Dante.) Mas terminou levando a sério a ameaça e marcou também para a próxima semana uma reunião interna com os membros do grupo Novo PMDB. Pretende, então, dizer-lhes que, se querem participar ativamente da campanha, as portas abertas nas comissões de vários tipos que estão sendo organizadas. A chefia da campanha, contudo, vai continuar nas mãos de Archer – defenderá Ulysses. Inclusive porque ele não tem mandato parlamentar e, portanto, encontraria, na sua opinião, mais disponibilidade para trabalhar. As dificuldades de Ulysses são, no fundo, políticas – e começaram quando se lançou, pouco antes da Convenção do PMDB. Houve reação forte e inesperada. Um grupo de 12 governadores procurou-o na intimidade para dizer-lhe que seu nome, simplesmente, não estava sendo bem acolhido pelas bases. Os motivos dessa acolhida só eram dados pelos governadores em conversas muito reservadas, sem a presença constrangedora de Ulysses. Havia, em primeiro lugar, a chamada "síndrome de Tancredo” – a desconfiança do eleitorado com os 72 anos do candidato. De outra parte, Ulysses teria se identificado demais com o governo decadente de José Sarney, nos últimos dois anos. Agora, seria difícil descolar o candidato do presidente execrado pela opinião popular.
Ulysses não ouviu argumentos tão duros e claros naquele encontro com os governadores. Mas para bom entendedor basta meia palavra e mesmo depois de superar oficialmente as resistências (na conversa constrangida e na convenção que se seguiu), ele identificou de pronto que ali residia a principal dificuldade para a decolagem da candidatura. Ainda que aparentemente conformados, os governadores, em sua maioria, estavam descrentes. E, como eles, muitos parlamentares e chefes políticos estaduais. Por isso mesmo, Ulysses decidiu que a estratégia de sua campanha começa pela conquista da adesão do próprio PMDB para a candidatura. Em reuniões sucessivas com Archer, ele procurou traçar planos para “juntar os fios do partido”, como define em conversas reservadas – e, nesse trabalho exaustivo, gastou a maior parte do seu tempo de candidato.
Já se percebem, claramente, os primeiros resultados desse esforço, embora a pesquisa do Ibope dê 19% de aceitação para o PMDB e apenas 5% a Ulysses. Alguns governadores renitentes caminham lentamente para o aprisco: como o mineiro Newton Cardoso, que fez declarações públicas de apoio a Ulysses e de critica ao seu adversário Fernando Collor de Mello. Além disso, Newton prepara encontros do candidato com as chefias políticas do norte de Minas, onde domina com mão de ferro os cabos eleitorais. Outro renitente, o gaúcho Pedro Simon, também faz o caminho de volta, e até com mais rapidez: patrocinou há dez dias uma reunião do candidato Ulysses com cerca de 2.500 lideranças locais do partido, um lance que Ulysses apelidou de “extraordinário, pela vibração e pelo entusiasmo dos militantes”. E pela mesma linha de adaptação à candidatura parecem seguir, também, os governadores Alvaro Dias (Paraná), Casildo Maldaner (Santa Catarina), Marcelo Miranda (Mato Grosso do Sul) e Miguel Arraes (Pernambuco). Este último, na semana passada, organizou também um encontro de Ulysses com as lideranças regionais de seu Estado; teve a deferência de ir receber o candidato no aeroporto de Recife; até mesmo saudou-o, em discurso veemente, como “o futuro presidente da República”. Para quem, há apenas 20 dias, declarava-se descrente quanto as chances de Ulysses diante de Collor, foi um progresso apreciável. Ulysses deu maior importância, ainda, às manifestações da militância que pôde sentir durante esses encontros. Animado com o calor das recepções, ele arriscou, com êxito, alguns lances de efeito que pretende utilizar, mais tarde, na campanha pela tevê e nas praças públicas. O problema da idade, por exemplo, foi enfrentado de peito aberto. “Ofereço à minha pátria a minha idade, a minha coragem e, sobretudo, a minha experiência”, disse por onde andou, sendo sempre entusiasticamente aplaudido.
De olho na cadeira
Presidente da Constituinte recebe o promissor governador de Alagoas (1987)
Assim, Ulysses procura, nitidamente, reverter em seu favor o dado negativo da idade. E essa tática de reversão parece ser a sua preferida, nesta campanha. Ele prestigia acima de tudo o partido, num tempo em que se canta a desimportância das legendas e quando o líder das pesquisas é exatamente Collor, que só conta com uma ficção partidária, o PRN. Da mesma forma, Ulysses insiste na defesa do Congresso e dos políticos, exatamente no instante em que a atividade político-parlamentar chega ao seu mais baixo grau de credibilidade.
Ulysses, sem dúvida, é um resistente. Sua história política demonstra claramente essa qualidade: ele resignou-se a ficar no MDB logo após a vitória do movimento armado de março, quando muitos dos seus antigos colegas do PSD se bandeavam para o lado vitorioso. Aparentemente, uma decisão errada, para um político que não tinha grandes vinculações ideológicas com os perdedores. Mas Ulysses considerou inconciliável com o seu passado de ministro do regime derrotado a participação num partido que daria apoio aos vitoriosos. Discreto, mas eficiente, logo se tornou um dos dirigentes do partido, em 1966, criado para fazer oposição de mentirinha. E em pouco tempo estava comandando uma oposição de verdade, e que incomodava o governo militar – tanto que seus representantes tinham os mandatos cassados com incrível regularidade.
Em 1974, Ulysses teve a inspiração da “anticandidatura” a presidente da República. Correu o País como se tivesse chance de eleger-se num colégio eleitoral onde os representantes do poder eram flagrantemente majoritários. O então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, tentou intimida-lo com os cachorros da Policia Militar, mas não conseguiu: Ulysses enfrentou os latidos ameaçadores, caminhando em direção à eles, para entrar na História. Pouco depois, chegou a comparar o general Geisel a um “Idi Amin” dos Trópicos. Quase foi cassado, mas sobreviveu, inatacável na sua aura de respeitabilidade.
Em 1984, ainda coube a Ulysses comandar a campanha nacional pelas eleições diretas, surgindo novamente como candidato a presidente da República. Multidões foram às ruas para ouvi-lo, mas o aplauso não lhe subiu à cabeça: ele recuou para que Tancredo passasse, no Colégio Eleitoral, quando sentiu que o outro, de fato, teria mais chances de compor as alianças para derrotar Paulo Maluf. E Ulysses ainda cederia de novo, na noite do impedimento de Tancredo Neves, atirado a uma cama de hospital com infecção intestinal: houve quem o quisesse como substituto imediato do presidente eleito, mas não empossado, que era o presidente da Câmara; contudo, Ulysses preferiu a mais simples, apoiando a subida de José Sarney. Assim procurava evitar uma crise institucional, pois os militares, certamente, prefeririam o antigo amigo no poder. Tendo cedido o lugar por duas vezes, Ulysses mostra-se nessa terceira oportunidade, a eleição direta, possivelmente porque sente que é a sua derradeira cartada presidencial. Mas os tempos mudaram para Ulysses e o PMDB. O partido que em 1986 chegou ao seu auge com 305 constituintes e 22 governadores eleitos, hoje vê se reduzirem a cada dia as suas bancadas no Congresso, Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores, além de já ter perdido três governadores. Ulysses, portanto, baseia-se no PMDB justamente quando sua força eleitoral se esvai e quando as perspectivas da eleição surgem nada animadoras.
Há, também, problemas regionais bem definidos. No Ceará, por exemplo, o governador Tasso Jereissati ainda lhe pede tempo para apoiar a candidatura. Tasso gostaria de fazer seu sucessor o secretário de governo Sérgio Machado, mas sabe que Ulysses preferiria o deputado Paes de Andrade, velho amigo do PSD e atual presidente da Câmara. Além disso, há problemas pessoais nesse desencontro entre Tasso e Ulysses. O governador ainda não lhe teria perdoado, segundo alguns observadores, o veto à sua indicação por Sarney para o Ministério da Fazenda, em 1987 – com a queda de Dilson Funaro. Ulysses não gostou da ideia e Sarney, por sua influência, indicou Bresser. Outra questão regional de complicada solução localiza-se em Pernambuco. Ali, Miguel Arraes vê-se isolado, num instante em que seus tradicionais adversários, Roberto Magalhães e Joaquim Francisco, transam com o esquerdista Brizola e quando o comunista Roberto Freire prepara, com a tentativa presidencial, uma forte candidatura ao governo do Estado em 1990. Arraes gostaria de fazer seu vice Carlos Wilson para a sucessão, mas não está encontrando espaço. Por isso, vai engolindo a candidatura Ulysses com muita dificuldade. Nos intervalos, parece mesmo disposto a aceitar a sobremesa esquerdista que lhe é oferecida pelo candidate do PT, Luis Inácio Lula da Silva. Na semana passada, Lula ofertou a Arraes a vice de sua chapa.
Em Minas, ainda que apoiado por Newton Cardoso, Ulysses sofreu um golpe na semana passada, quando a vice-governadora Júnia Marise anunciou sua adesão a Fernando Collor. Também aí um lance de sucessão: Júnia quer encontrar espaço próprio para 1990, sem ficar à sombra de Newton Cardoso e se aliando ao vice de Collor, Itamar Franco. Outro lance mineiro da semana foi a anunciada adesão de Márcia Kubitschek a Collor – também um severo revés para Ulysses. Há algum tempo, Márcia esteve com Ulysses para revelar-lhe sua tendência a collorir em troca da candidatura à vice-presidência e ouviu uma reprimenda. “Seu pai estaria comigo nesta eleição”, disse-lhe Ulysses, lembrando que o pai de Collor, Arnon de Melo, fazia aposição a Juscelino Kubitschek. Fora isso, Ulysses avisou a Márcia que Collor não daria a ela a vice, como ela chegou a sonhar, e sim a Itamar Franco.
Foi o que, de fato aconteceu. Itamar virou vice de Collor e Márcia, irritada, repetiu, à frente de Ulysses, na inauguração de um diretório do PMDB em Brasília, sua frase sobre o voto de Juscelino, sob aplausos gerais. Márcia reatou, porém, seu namoro com Collor e, na semana passada, parecia a um passo de collorir.
Tudo pela democracia
O anticandidato do MDB enfrenta os cães da ditadura em Salvador (1974)
Ulysses, por certo, dá muita importância aos incidentes regionais da campanha. Percebe que, se não os resolver a tempo, pode perder a máquina partidária com que pretende ainda reverter as primeiras tendências das pesquisas, alcançando a vitória final. Ele deu uma mostra dessa sua preocupação na Paraíba, quando jogou nitidamente em favor do prestígio à liderança local de Ronaldo Cunha Lima, antepondo-se ao governador Tarcísio Buriti, que ameaça deixar o partido. Ulysses elogiou Cunha Lima e disse que Buriti, se quer sair, deve fazê-lo o quanto antes,“para não atrapalhar o partido”. Só que – acrescentou – deveria sair devolvendo o cargo que o PMDB lhe deu. “Este partido não é casa de tolerância nem agência de turismo!” – atacou Ulysses, sendo entusiasticamente aplaudido pelos correligionários paraibanos.
Já a identificação com Sarney não parece tão preocupante para Ulysses. Ele insiste que deixou de dar palpite no governo desde a reforma ministerial de 1986, quando o presidente manifestou o desejo de ter um ministério de sua exclusiva confiança. Possivelmente, considera a indicação de Bresser uma mera exceção desta regra. De todo modo, Ulysses assegura que os atuais ministros “não têm compromisso com o PMDB”. E declara-se confiante que o eleitorado acabará compreendendo essa dissociação do seu partido com o governo Sarney. Ele pretende deixá-la mais clara nas próximas horas, quando o PMDB vai se posicionar contra a nova política salarial do governo. Mas recusou a proposta de alguns dos seus conselheiros, que desejavam vê-lo criticando aberta e diretamente o presidente da República. Ulysses, pelo contrário, desmentiu criticas que, segundo os jornais, teria dirigido a Sarney num discurso em Porto Alegre. Na verdade, endereçou farpas ácidas, mas genéricas, ao presidente.
Ele não aceita a ideia de alguns assessores, segundo a qual Collor é, a esta altura,o adversário a ser atingido. Experiente, Ulysses considera que o jovem líder das pesquisas ainda tem muito chão pela frente antes de confirmar sua condição de favorito. Um dado recente pareceu-lhe bastante significativo: Collor foi vaiado quando compareceu às barracas da “Festa dos Estados” em Brasília, há dez dias. Nesse mesmo dia, ele,Ulysses, foi aplaudido.
De qualquer modo, Ulysses não gosta muito de falar sobre os resultados das pesquisas, que insistem em apontá—lo num incômodo terceiro lugar, com 5% a 7% das preferências de voto. Ele concorda com a opinião de Aureliano Chaves de que as pesquisas não deveriam induzir o voto. Pretende mesmo apoiar a proibição do anúncio de resultados e pesquisas cinco dias antes do pleito. Contraditoriamente Ulysses usa, porém, pelo menos um dado da pesquisa a seu favor: é a preferência do eleitorado pela legenda do PMDB. Bastaria “colar” a candidatura ao partido, raciocina Ulysses, e ele estaria garantido para o segundo turno eleitoral.
Agora sou eu
A Tancredo cedeu a vez. Nunca mais
Nos últimos dias passou esse raciocínio adiante até para ouvintes de outros partidos, entre os quais o presidente do PTB, Paiva Muniz. Ulysses apreciaria um acordo com o PTB, já antes até do segundo turno, mas aceita qualquer acordo, mesmo a posteriori. Ele se diz disposto a fazer “todos os acordos possíveis, desde que não descaracterizem a candidatura”. Outra hipótese do acordo muito acalentada é com o PSDB de Mário Covas. Ulysses encontrou-o em São Paulo, dias atrás, nos bastidores do programa de Jô Soares, e trocaram um longo abraço. Aos amigos, Ulysses segreda que a possibilidade de um acordo com o PSDB no segundo turno é “um dado natural da campanha”. Ele espera continuar crescendo, mesmo lentamente, nas próximas pesquisas, de modo a motivar esperanças novas na máquina partidária. Obtidas pelo menos 10% das preferências, prevê, “tudo ficará mais fácil”.
Ulysses sabe que o pior momento de sua campanha é o de hoje. Se chegar aos 10% pretendidos, supõe, ainda poderá decolar com a ajuda da “máquina” e do programa de televisão gratuito. “Ninguém tem 23 minutos como nós. E mais: ninguém tem os quadros para ocupar esse tempo. Porque não basta ter tempo, é preciso ter gente para falar”, tem dito ele, repetidamente, numa demonstração do otimismo com que pretende incendiar o PMDB.