"Camarada, não percebe que está atrapalhando a conversa? Assim não dá para gravar a entrevista!” Quem deu a bronca foi um preso. Quem a levou foi um guarda da Penitenciária de Segurança Máxima de Araraquara, no interior de São Paulo. A entrevista que não dava para gravar, se o radiotransmissor do agente insistisse em tocar, foi a que Hosmany Ramos, um dos mais famosos presos do País, concedeu a ISTOÉ. O cirurgião plástico de 56 anos, que na juventude foi o melhor aluno de Ivo Pitanguy, nas palavras do próprio mestre, está preso desde 1981. Sua pena é de meio século de reclusão por assassinato, roubo de jóias e contrabando de aviões. Ele acaba de lançar o seu quinto livro, Pavilhão 9 – vida e morte no Carandiru, em que relata a história do massacre de 111 presos ocorrido em 1992 na Casa de Detenção de São Paulo. Rico, excêntrico e assíduo frequentador da sociedade carioca, Hosmany trocou as colunas sociais pelas páginas policiais numa época em que o crime era ainda glamourizado. “Hoje bandido é muito nervoso, mata por qualquer coisa”, diz ele. Em 1996, a Justiça lhe concedeu o benefício do regime semi-aberto. Saiu e não voltou à prisão. Sequestrou um empresário em Minas Gerais, foi baleado e acabou recapturado. Nesta entrevista, Hosmany fala – e muito mal – dos políticos, dos emergentes e da vida carcerária.

ISTOÉ – Os seus quatro primeiros livros foram muito lidos, sendo que um deles, Marginália, foi publicado pela editora Gallimard e já é sucesso de vendas na França. O sr. está ganhando dinheiro?
Hosmany Ramos – Dinheiro? Se tivesse dinheiro eu não estaria preso. Não tenho poupança, nenhum imóvel, nada.

ISTOÉ – Qual é o seu estilo literário?
Hosmany – Eu trabalho a frase num ritmo cinematográfico. Sou expressionista. Sempre escrevi. Eu sou um escritor.

ISTOÉ – Como nasceu Pavilhão 9?
Hosmany – Eu tinha preparado um livro de contos até conhecer um preso, sobrevivente do massacre, que foi meu vizinho de cela na Penitenciária de Avaré. Ganhei a confiança dele e remontei a tragédia da rebelião.

ISTOÉ – Quando o presidente Fernando Henrique foi eleito, o sr. disse que ele seria “um luxo para o Brasil”. Qual a sua opinião sobre os recentes escândalos políticos?
Hosmany – Acho que o Oscar Niemeyer projetou aquele vão entre as duas torres gêmeas do Palácio do Planalto para instalar uma guilhotina. No dia em que se colocar a cabeça de muitos políticos numa lâmina polida acaba essa roubalheira. Há um senador da tal Comissão de Ética que tem culpa em cartório. Eu conheço bem esse cidadão. Só não revelo o nome dele porque é capaz de me mandar matar na cadeia.

 

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ISTOÉ – Como é o seu convívio com os outros presos?
Hosmany – Eles me respeitam e eu os respeito.

ISTOÉ – A cadeia recupera?
Hosmany – A máxima segurança das penitenciárias virou máxima humilhação. Qualquer indivíduo que saia hoje da prisão vai querer meter bala no primeiro que aparecer na sua frente.

ISTOÉ – Qual a diferença da violência de hoje comparada à do seu tempo?
Hosmany – Antigamente os bandidos eram mais românticos. Ninguém usava arma, só a inteligência. Hoje bandido é nervoso, mata por qualquer coisa.

ISTOÉ – O sr. se lembra de algum golpe famoso?
Hosmany – Havia um golpe chamado “Cavalo de Tróia”. Inventava-se uma entrega de um armário numa mansão qualquer do Morumbi. Dentro de um fundo falso do móvel, se escondia um ladrão magrinho, que ia assaltar e abrir as janelas para os comparsas. A limpeza era geral.

ISTOÉ – O que lembra da vida na alta sociedade carioca?
Hosmany – Morava de frente para a praia, frequentava restaurantes finos. Convivia com gente importante. Fazia parte daquele nosso rol de amizades só quem tivesse dinheiro. Isso é passado, acabou.

ISTOÉ – O que acha dos novos emergentes?
Hosmany – Falta charme para essa geração de ricos. A socialite de hoje é extremamente vaidosa. Não sabe o que fazer com o dinheiro. Em vez de frequentar o sofá de um analista, começa a gastar a rodo. Não usa os neurônios, só a aparência. Daí a coisa degringola.

ISTOÉ – E pode levar ao crime?
Hosmany – Claro, é uma completa neurose. Eu vivi isso. Tinha mais de 40 ternos, 30 sapatos. Era um traje novo, de primeira linha, a cada dia. Hoje a prisão me ensinou que não preciso mais do que duas peças de roupa para viver.

ISTOÉ – Por que o sr. está preso?
Hosmany – Sou vítima da chamada “ditadura dos juízes”. De repente, fui projetado como uma necessidade de se demonstrar que o Judiciário é forte, que prende também rico. Tinha um Mercedes Benz, uma bela casa, tudo o que um bom cirurgião plástico em início de carreira já desfruta.

ISTOÉ – Afinal, quantas vezes o sr. fugiu da cadeia?
Hosmany – Eu nunca fugi. Abandonei o semi-aberto da Colônia Penal de Bauru. Isso acontece com muitos presos. O juiz consentiu que eu passasse o Dia das Mães na rua e eu decidi não voltar. Tinha sido muito humilhado na prisão. A minha única fuga de verdade foi da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Eu não fugi 11 vezes como a imprensa diz.

ISTOÉ – O sr. faz planos para o futuro em liberdade?
Hosmany – Escrever e me dedicar à cirurgia plástica reparadora. Quando estive em Presidente Venceslau, fiz 80 cirurgias desse tipo em presos. Tirei tatuagens, fiz coisas boas. Minha vida não é só tragédia.

ISTOÉ – O sr. nunca admitiu os seus crimes. Admite agora?
Hosmany – Não. Nunca fui réu confesso, sou um injustiçado.


ISTOÉ – Ivo Pitanguy, o mais prestigiado cirurgião plástico do Brasil, considera o sr. um grande profissional. Como vê isso?
Hosmany – Ele é um médico excepcional. Tinha orgulho de mim e eu dele. Certa vez, me apresentou a um renomado médico americano e disse: “Esse é o meu melhor aluno.” Nunca mais esqueci.

ISTOÉ – O sr. se arrepende de sua carreira criminosa?
Hosmany – Só me arrependo de não ter sido feliz. 


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