É dura a vida de quem está na pole position de uma campanha eleitoral a 15 longos meses da corrida para chegar ao Palácio do Planalto. Exposto à chuva e aos holofotes, qualquer escorregada pode provocar um acidente fatal para o PT de Luiz Inácio Lula da Silva. Ao atingir a maioridade, com 21 anos, o Partido dos Trabalhadores já é gato escaldado: depois de ter perdido três eleições presidenciais, teme muito mais do que a água fria. O próprio Lula expôs um trauma antigo ao lembrar que foi vítima da “máxima de 1989”, lançada pelo então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Mário Amato: a de que se Lula vencesse os empresários fugiriam do País. Perseguidos pelo fantasma da rejeição, os petistas – pelo menos os moderados – estão ávidos por conquistar o coração e a confiança da classe dominante, para usar um termo do glossário marxista. Para isso, a ala light do PT – legenda que nasceu embrulhada na bandeira do socialismo – colocou no forno uma versão comportada de projeto de governo para a quarta candidatura de Lula. No documento, a palavrinha mágica de dez letras – socialismo – é citada uma só vez. E ainda assim para lembrar a sua derrocada nos países do Leste Europeu. Trata-se de um projeto que, em linhas gerais, propõe substituir o chamado capitalismo selvagem, regido pelas leis frias do mercado, por um capitalismo humanizado, voltado para as ações sociais.

Elaborado por 14 economistas, sob a coordenação do principal assessor econômico de Lula, Guido Mantega, o documento recebeu aplausos gerais dos forasteiros e vaias de parte do público interno. Os petistas não gostaram de terem sido os últimos a saber que o Instituto da Cidadania, ONG dirigida por Lula, estava elaborando o projeto. A divulgação de um esboço de programa não teria provocado tanto barulho se Lula não despontasse como favorito nas pesquisas de opinião e se o governo Fernando Henrique Cardoso não estivesse amargando uma crise de popularidade, econômica, energética e política, turbinada pelo caos na Argentina. Com a crise batendo à porta e a oposição crescendo, o governo, pela voz do ministro da Fazenda, Pedro Malan, encostou o PT na parede, cobrando a sua receita econômica. Lula reagiu, acusando-o de querer colocar cascas de banana em seu caminho. FHC entrou em cena como bombeiro. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o presidente surpreendeu ao afirmar que uma eventual vitória da oposição não ameaçaria a estabilidade econômica. Não foi um ato repentino de bondade de FHC para com seus adversários. Foi puro instinto de sobrevivência, uma tentativa de evitar a retração dos investidores externos.

Nos bastidores, os economistas do partido já vinham costurando um esboço de programa econômico há seis meses. A idéia era submetê-lo à opinião de especialistas de fora, mas sem divulgá-lo agora. Tanto que na primeira página do documento há a advertência: “Texto para discussão interna, proibida a divulgação.” Mas o plano não deu certo. O deputado federal e economista Aloízio Mercadante precipitou a discussão ao propor a divulgação de uma agenda mínima com outro presidenciável, Ciro Gomes (PPS), com o objetivo de sinalizar tranquilidade ao mercado. Além disso, o deputado, que ajudou na elaboração do documento, deu entrevistas adiantando que era a favor de preservar metas inflacionárias, um dos dogmas do atual governo. Ele também conseguiu atrair as atenções ao não descartar a polêmica idéia de independência do Banco Central. “Mercadante tentou se projetar mais do que o Lula e causou um grande mal-estar no partido e entre os economistas. Nem a independência do BC nem a idéia de uma agenda mínima com Ciro contam com o apoio de Lula e do PT”, reclamou um petista próximo ao presidente de honra. O documento acabou vazando para a imprensa.

Na segunda-feira 18, o texto foi divulgado oficialmente, durante reunião com 30 economistas. Na entrevista coletiva, o presidente do PT, deputado José Dirceu, não conseguia disfarçar o mal-estar e advertiu, ao lado de Mercadante: “Falou-se em independência do Banco Central, mas o documento não tem essa proposta. Este não é o programa oficial do PT. Há um processo de discussão no partido, e sete teses (programáticas) serão votadas no nosso encontro nacional, em dezembro.” Era uma tentativa de acalmar os ânimos internos, num momento em que Dirceu está em plena campanha para ganhar, pela quarta vez, a presidência nacional do PT, em eleição direta marcada para o dia 16 de setembro. O deputado é favorito na disputa que será travada com mais cinco concorrentes. De fato, como tudo no PT é votado, o esboço delineado pelos economistas só terá validade se passar pelo crivo da base. Mas a diplomacia de Dirceu não conseguiu evitar os protestos internos. O líder da bancada federal, Walter Pinheiro (BA), acusou os economistas de atropelarem o partido.

Ao mesmo tempo que tentavam aparar as arestas internamente, os dirigentes petistas estavam ansiosos para ver a reação externa ao documento, batizado com o mesmo nome da tese encampada pelos moderados e que será votada no encontro nacional de dezembro: “Um outro Brasil é possível”. Ao público externo, no documento dos economistas, os petistas não defendem mais o socialismo e rejeitam “o voluntarismo utópico e ingênuo que entusiasmou e frustrou propostas históricas da esquerda brasileira”. Também rechaçam a Terceira Via, encampada pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, do Partido Trabalhista, que conta com o apoio de FHC. “Não existe nenhum comprometimento com o socialismo. O objetivo é transformar o capitalismo selvagem em capitalismo democrático. Socialismo é uma palavra abstrata. No início, o PT se dizia socialista, mas nunca houve uma definição de que tipo de socialismo defendia. Para mim, o socialismo pode ser a plena democracia econômica e social”, opinou Guido Mantega. Porém, todas as teses que serão discutidas no encontro nacional defendem o socialismo, sendo que a dos moderados é a menos contundente, desmistificando a velha tese marxista de que o socialismo é inevitável. A palavra surge uma vez na tese, em tom elogioso. “O PT reafirma os valores do socialismo democrático, que continua sendo uma possibilidade histórica aberta para a humanidade, um processo a ser construído, e não uma inevitabilidade.”

Repercussão – Empresários e economistas que não comungam com as idéias do PT gostaram da suave melodia entoada. Uma surpresa foi a proposta de manter as metas inflacionárias. Outra novidade é a defesa da manutenção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), com alíquotas mais baixas do que a atual, para ajudar na luta à sonegação fiscal. O partido sempre combateu o imposto. Desta vez, os petistas dão ênfase à necessidade do capital externo, não especulativo, para financiar a atividade produtiva do País. Bem diferente de seu antecessor Mário Amato, o presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva, elogiou a “flexibilidade” petista. “Governar fez do PT um partido mais pragmático”, aplaudiu o economista e deputado federal Delfim Neto (PPB-SP). “O PT mudou para melhor”, atestou Antoninho Marmo Trevisan, da Trevisan Consultores e Associados, que foi convidado para opinar sobre o texto. O economista Celso Furtado chegou a enviar um e-mail elogioso a Lula: “É lúcido e de elevado nível técnico.” Já o ex-ministro Maílson da Nóbrega viu contradições no documento: “O projeto traz propostas para aumentar os gastos, mas não explica como vai aumentar a arrecadação.” Alguns ficaram com a impressão de que os petistas não propõem romper com a estrutura do modelo atual. “É uma espécie de FHC de verdade”, observou Delfim. Em sua coluna diária, o escritor Luís Fernando Verissimo também ironizou, chegando a propor o lançamento de Fernando Henrique como candidato da oposição.

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Para a economista Maria da Conceição Tavares, no entanto, trata-se do “programa de FHC de cabeça para baixo”. Ricardo Carneiro, um dos signatários do documento, resume: “A única coisa que o governo propôs foi a estabilidade. Nós propomos muito mais: estabilidade, distribuição e crescimento. Para conseguir isso definimos o eixo de expansão, que é o mercado interno com bem de consumo de massa.” O canto petista parece estar surtindo efeito. “Sinto hoje muito mais receptividade e simpatia por parte do empresariado. O governo FHC tratou os empresários como capachos, como seres abjetos. O nosso tratamento com relação aos empresários não é esse”, constatou Guido Mantega. Pelo jeito, o PT está deixando de ser só dos trabalhadores.

O modo petista de governar

Inflação
Dívida externa
Manutenção do sistema de meta inflacionária num cenário de distribuição de renda e redução dos desequilíbrios externos. A dívida externa privada não terá mais mecanismos de estatização e socialização dos riscos e prejuízos. Renegociação da dívida externa pública para permitir alívio nas contas públicas.
Política externa
Crescimento econômico
Defesa do Mercosul. Considera que a Alca vai fragilizar o sistema produtivo do País. Rejeita o Plano Colômbia, por considerar que este vai isolar o Brasil e militarizar a região amazônica. Combate ao fluxo de capitais externos especulativos. O crescimento econômico sustentado será possível com a expansão do mercado interno e do consumo de massas. Este crescimento deve vir acompanhado de elevação de gastos públicos (em habitação, saneamento e infra-estrutura) e da expansão das políticas públicas (em educação e saúde).

Distribuição
de renda
Reforma tributária
Redistribuir renda através da expansão da produção para o consumo de massas. Este é o eixo de um novo modelo de desenvolvimento. Aumento do salário mínimo e subsídio de serviços essenciais. Implementação dos programas Renda Mínima e Bolsa Escola. Redução do número de impostos e aumento da progressividade e da base de arrecadação, taxando mais os ricos e menos os pobres.
Política fiscal
Agricultura
Redução da taxa de juros. Prega a mudança do perfil da dívida pública e o aumento dos gastos públicos para gerar crescimento econômico. Incentivo à agricultura familiar. Acelerar o ritmo da reforma agrária para gerar empregos no campo.

Emprego e combate à fome
Privatização
Implementação de políticas específicas para criar novos postos de trabalho, redução da jornada e encarecimento das horas extras. Criação do Programa de Tolerância Zero à fome, inspirado em programa de distribuição de cesta básica. O Estado continua com o controle do petróleo, da geração de energia e em áreas de serviços como saneamento e transportes. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil não serão vendidos. Defende um imposto sobre o lucro extraordinário das empresas privatizadas.


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