O canal que separa a cidade de Santos da ilha de Santo Amaro, famosa por abrigar a badalada praia do Guarujá, pode ser considerado uma avenida Paulista aquática. Pelo corredor de acesso ao maior porto do Hemisfério Sul passam, diariamente, cerca de 30 grandes navios e uma infinidade de barcos pesqueiros, iates, lanchas, veleiros, balsas, catraias e caiaques. Há dois meses, uma charmosa embarcação vem dando um pouco de colorido e poesia ao caos marítimo. Objeto de adoração dos nativos da ilha das ondas gigantes, a canoa havaiana chegou ao Brasil para se tornar o novo brinquedo dos viciados em adrenalina.

Antes que se faça alguma confusão, a wa’há, no dialeto havaiano, ou outrigger, nome que recebeu dos colonizadores americanos, nada tem a ver com aqueles famosos barquinhos dos filmes “sessão da tarde” de Elvis Presley. Robusta e estreita, está longe de ser um bom lugar para namorar. Pelo contrário. A embarcação tem mais de três mil anos de história. Foi a bordo desses barcos, movidos a remo e vela, que os primeiros habitantes da Polinésia colonizaram as ilhas da região. Entre elas, pequenos pedaços do paraíso, como Bora-Bora, Taiti e Ilha de Páscoa. Por serem sagradas, cada partida era precedida de um ritual religioso, no qual os sacerdotes abençoavam as canoas e pediam proteção para enfrentar as gigantescas ondas do mares do Sul.

As corridas começaram no início do século passado. As primeiras competições aconteceram entre os velhos rivais havaianos e taitianos. Os barcos, originalmente fabricados de uma madeira chamada koa, passaram a ser produzidos em fibra de vidro. Apenas os iakos, os hoes e a ama ainda são de madeira. O outrigger é um esporte organizado. Conta com uma federação internacional e uma temporada com várias provas. Mais de dez países praticam a modalidade. A competição mais importante é a travessia a remo entre as ilhas de Molokai e Oahu, disputada anualmente no Havaí. É uma espécie de Olimpíadas das canoas havaianas. A prova fascinou o canoísta e engenheiro paulista Fábio Paiva, 38 anos. Há seis anos, ele ficou alucinado ao assistir a dezenas de pessoas lançando-se ao mar na milenar embarcação. De lá para cá não tirou da cabeça a idéia de trazer o esporte para o País.

Harmonia – Mas, enquanto Paiva via pela tevê, o carioca Ronald Williams, 38 anos, sentia na pele a vibração de remar uma lenda. Ele é o primeiro, e até agora único, brasileiro a competir no Havaí e na Polinésia. Em setembro de 1999, Williams voltou ao Rio de Janeiro depois de alguns anos no Canadá. Na bagagem, trouxe o kit com duas canoas. Paiva, dono de uma fábrica de caiaques e canoas em Santos, encarregou-se da montagem dos barcos. Aproveitou o trabalho para tirar o molde da primeira de suas quatro canoas. Williams é o fundador do Rio Outrigger Club, com sede na Barra da Tijuca e hoje com 20 sócios. A canoa lanakila já faz parte da paisagem carioca. “As pessoas param para ver a canoa navegar. É um esporte muito legal. Ele põe o remador em contato íntimo com o mar. Além disso, exige sincronia e harmonia”, diz Williams. Há planos para a utilização do outrigger no treinamento de grandes empresas. Assim como no rafting, a descida em rios de grandes corredeiras, é preciso espírito coletivo e integração para fazer o barco andar e, sobretudo, não virar. Essas duas qualidades são o segredo do sucesso em um mercado cada vez mais selvagem e competitivo.

Em Santos, mais de 30 pessoas inscreveram-se nas aulas de Fábio Paiva, um atleta com 15 títulos brasileiros de canoagem. Além de força e sincronia, é preciso muita disposição. As remadas começam por volta das 5h30 e param às 7h. Os percursos têm em média 12 quilômetros. Até o final do ano, Paiva organizará quatro corridas classificatórias para determinar as 12 equipes que participarão da Grande Travessia. A disputa terá um percurso mínimo de 70 km, em mar aberto, de Santos a Ilhabela, litoral norte do Estado. Tem gente contando os dias para a corrida. É o caso da assistente de diretoria Renata Censon, 27 anos. A paulistana acorda todos os dias às 4h30. Duas vezes por semana vai ao litoral. Nos outros dias rema na raia olímpica da Universidade de São Paulo, USP. Balada? Vida noturna? Nada disso. O negócio da moça é remar. “É um esforço que vale a pena. Você sai de Santos e não imagina que há praias tão bonitas logo ali. É um esporte superdivertido. Dá até para levar algumas frutas no barco para fazer piquenique. É também um ótimo exercício. A única preocupação é estar atento para o barco não virar”, diz Renata, campeã paulista e brasileira de rafting. Até agora, a grande maioria dos praticantes é composta por atletas de esportes aquáticos e de aventura.

Mas a brincadeira não é só para super-homens e mulheres maravilhas, não. Paiva e seu sócio, Frederico Diez Perez, 24 anos, querem montar uma base em Ilhabela. De lá sairão passeios mais leves, nos quais a ilha será contornada em remadas compassadas com providenciais paradas para descanso. Mas antes disso, há um compromisso com os deuses. No final de julho, as canoas serão batizadas em um ritual havaiano. Os sócios pretendem trazer um sacerdote da ilha para a cerimônia. A celebração terá até as famosas dançarinas de hula-hula, com suas saias coloridas e seus colares brilhantes. Proteção é sempre bem-vinda. Na saída do passeio acompanhado por IstoÉ, uma das canoas virou. Dias antes, outra se partiu na perigosa Garganta do Diabo, onde as ondas chegam a alcançar dois metros na costa de São Vicente, município vizinho a Santos. Isso não é nada comparado aos riscos dos velhos nativos da Polinésia. Mas um acordo com os espíritos e um bom colete não fazem mal a ninguém. Aloha. Hip Roll. 

A lenda da canoa havaiana

Há 3000 anos, a deusa Pele se apaixonou por um rapaz, Hi’iaka. Mas o moço não deu muita bola para ela e se encantou com Lohi’au. Possessa, Pele mandou construir uma canoa bem forte que pudesse resistir à força das marés. Desiludida, ela deixou Bora-Bora e foi para o Havaí. A pequena canoa, chamada, O ka-moho-ali’i, triunfou sobre a violência das ondas. Ao chegar à ilha, Pele se refugiou dentro do mais violento dos vulcões, o Kilauea. Até hoje, a cada erupção, os nativos juram que a lava do vulcão é a lágrima da deusa abandonada.