Já se disse que uma das maiores características da guerra é a confusão. Se for assim, as tropas multinacionais capitaneadas pela Austrália e encarregadas de levar a paz ao Timor Leste já estão em plena guerra. Dois exemplos ajudavam a dar força a este chavão. O primeiro aconteceu em território timorense, no qual na quinta-feira 23 os primeiros tiros entre indonésios e australianos foram trocados por causa de um mal-entendido. Os soldados do Exército da Indonésia foram confundidos com bandidos-milicianos locais. Um engano até que justificável, pois a linha que separa uns e outros neste caso é bastante nebulosa. O segundo exemplo de confusão afetava o pelotão de 54 homens da Polícia do Exército que representa o Brasil na empreitada. Em Darwin, local de concentração do grosso das tropas de países que compõem os oito mil soldados das forças de intervenção no Timor Leste (Interfet), ninguém sabia onde estavam os brasileiros. Está certo que o contingente é pequeno. Ainda assim, é espantoso que nem mesmo no escritório de informações das Forças de Defesa australianas alguém soubesse informar na sexta-feira 24 o paradeiro dos brasileiros.

“Se ninguém sabe onde eles estão, deve ser porque seu paradeiro tem de ser mantido em segredo”, arriscou incorretamente Carmel Elliott, oficial da Interfet encarregado de contatos com a imprensa em Darwin. Depois iria ser descoberto que o contingente brasileiro está aquartelado na base aérea de Tyndal – nos subúrbios da cidade de Katherine, a quatro horas de Darwin. “A tropa está na fase de adaptação ao local e o moral é bom”, garantiu um oficial de ligação brasileiro, o coronel Lima Neto, que já está há tempos em verdadeira ponte aérea entre lá e Díli, a capital timorense.

E Díli é o epicentro do caos. A destruição da infra-estrutura da cidade só é rivalizada pelo aparente colapso no comando das tropas indonésias. Pelo menos é isso que se tentava aparentar. O comandante militar indonésio, major-general Kiki Syahnakri, dizia que não era capaz de impedir ataques e tentativas de vingança de suas tropas iradas. Os últimos momentos da permanência indonésia em Timor Leste, depois de um domínio de 24 anos, mostravam um resumo compacto da violência que sempre lhes serviu como arma na administração do local. Esta mesma fúria, entenda-se, não ousava ainda atacar abertamente as forças multinacionais que chegaram para implantar a paz. Tanto que, apesar dos tiros trocados no imbróglio da quinta-feira, ninguém saiu ferido. A audácia dos milicianos, porém, parece aumentar e a prisão de um de seus líderes, Caetano da Silva, promete novos perigos aos soldados. Por isso adiou-se o desembarque no país do líder independentista timorense Xanana Gusmão, que desejava entrar em Díli nesta semana. Ele decidiu antes passar por Nova York, onde será recebido na sede da ONU. Neste começo de “Operação Estabilidade” – nome dado pelos australianos à missão –, as vítimas continuam sendo as de sempre: a população civil e os jornalistas. Calcula-se em mais de 30 mil os mortos desde as eleições.

Jornalista assassinado – Mais dois exemplos ajudam a pintar o quadro da violência demente no Timor. No primeiro, Sander Thoenes, 30 anos – um experiente repórter holandês do jornal londrino Financial Times –, foi brutalmente assassinado enquanto percorria um subúrbio de Díli. Ele estava na garupa de uma motocicleta quando – segundo o motorista – soldados indonésios bloquearam a rua. Na tentativa de fuga, a moto caiu e o jornalista foi alvejado. Antes de morrer, Sander foi castrado. Suas orelhas foram levadas como troféu pelos assassinos. Em outro incidente, um repórter inglês e um fotógrafo americano escaparam por pouco, mas seu motorista não teve a mesma sorte. “Um comboio militar indonésio nos parou. Os soldados puxaram o motorista de táxi que nos conduzia e começaram a espancá-lo com uma selvageria que eu nunca havia visto”, contou a ISTOÉ o americano Chip Hires, que já cobriu pela agência AP conflitos tão sangrentos quanto a permanente guerra no Afeganistão. “Eles batiam com fuzis e pistolas. Logo nos primeiros impactos, o olho direito do motorista pulou para fora. Isso não os impressionou: continuaram a bater, enquanto levavam o homem para um caminhão. Um oficial puxou uma pistola, atirou nos pneus do nosso carro e nos mandou correr dali”, contou Chip ainda abalado.

Em vista disso, a Interfet procurou reduzir a presença de jornalistas no local. A Força Aérea australiana cancelou todos os vôos de transporte para Díli. Até quarta-feira, 47 profissionais haviam feito a ponte aérea desde Darwin. Um número até que grande, tendo em vista que o pelotão de assalto dos jornalistas tem 250 homens.

Crocodile Dundee – Darwin é um lugar estranho, numa região acostumada a ciclones, ataques aéreos e estranhos animais – como as formigas brancas (espécie de cupim) que devoraram antes de 1880 a Government House (Palácio do Governo) original. Por isso, os soldados estrangeiros que aqui estão se parecem com marcianos. Na sexta-feira 24, por exemplo, era possível se admirar grupos de soldados franceses circulando à vontade pelo Mall – um calçadão comercial no centro da cidade. O destaque ficava por conta de seus uniformes: shortinhos bem curtos e aper-tados, modelando o corpo e causando olhares de esguelha da população acostumada aos rigores de um território isolado e inóspito. Afinal, está é a terra de Crocodile Dundee – o herói durão das telas. Neste meio ambiente, os valorosos rapazes – e moças – franceses provocaram falatório. Suas pernas, tão brancas quanto a parte central da bandeira de seu país, clamavam por um bronze. E bronzeado é a única coisa segura que se conseguirá nas magníficas praias locais. As águas do Mar do Timor que lambem as areias darwinianas não são recomendadas para o banho: estão povoadas de um tipo medonho de água-viva de picada mortal, além de crocodilos marítimos. São os maiores répteis do mundo e apreciam carne humana.

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Na retaguarda, os oficiais americanos vistos na sexta-feira estavam bem relaxados: eles se hospedavam no Carlyle Hotel, um quatro estrelas de Dar-win. O bel-boy do hotel, fazendo as honras da casa, ajudou a descarregar e transportar para dentro o equipamento pesado e de aparência letal. Perguntado se seu estabelecimento permitia a entrada de hóspedes fortemente armados, o gerente do Carlyle disparou: “Neste caso abrimos uma exceção. Além do mais, quem vai dizer para os marines que eles não podem entrar?”


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