O reitor diz que a instituição é um transatlântico que não tinha organização entre seus setores e, com os cofres vazios, defende a criação de um órgão autônomo para controlar gastos

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REIVINDICAÇÃO
"Grupos e sindicatos gostam de discutir temas em assembleias,
mas não encaminham suas demandas pelas vias institucionais", diz Zago

A Universidade de São Paulo (USP) está imersa em uma das maiores crises de sua história. Desde que se tornou reitor, em janeiro, Marco Antonio Zago tem se visto às voltas com vários problemas. Além de cair nos rankings internacionais de qualidade, a USP mergulhou numa greve de quatro meses em função do congelamento de salários dos servidores, está com o caixa vazio e sem recursos para investimentos. A folha de pagamento dos funcionários compromete 105% do seu orçamento, não há dinheiro para a contratação de docentes e as obras do campus estão paralisadas.

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"A USP tem que usar instrumentos digitais em seus cursos, trazer essas
técnicas para as disciplinas tradicionais. Isso exige reestruturação
e treinamento dos professores"

De junho de 2012 até abril deste ano, as reservas financeiras da universidade caíram R$ 1,3 bilhão. Nesse ritmo, a poupança acabaria em 2018 e a instituição entraria em colapso. Para reverter esse quadro, Zago anunciou um Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) para o qual destinou R$ 400 milhões e prevê o desligamento de 1,8 mil servidores da instituição a partir de 2015. Nos últimos tempos, a única boa notícia foi um acordo entre funcionários e universidade, mediado pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) para encerrar a paralisação, sobre percentual de aumento salarial e de bônus e a reposição dos dias parados. A expectativa é de que as unidades definam nos próximos dias como será o cronograma das aulas.

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"Pensamos em usar parcialmente o Enem no processo seletivo.
Há consenso de que ele deve ser incluído. Mas a estrutura do
vestibular terá de esperar mais um ano para ser mudada"

ISTOÉ

 O acordo com professores e funcionários é o começo do fim da crise?

 
Marco Antonio Zago

 Certamente. Havia um problema que agora foi solucionado e restabelece as condições para voltarmos a ser uma universidade progressista. Vamos restaurar o equilíbrio financeiro sobre o qual todos teremos que trabalhar. Somos tomos corresponsáveis por restabelecer o equilíbrio financeiro da USP.

 
ISTOÉ

 A longa greve e a grave situação financeira abalaram a imagem da universidade?

 
Marco Antonio Zago

 A imagem pública da USP certamente deve ter sofrido consequências. Mas não há como fugir. É uma instituição pública e as pessoas precisam saber o que acontece.

 
ISTOÉ

 Especialistas afirmam que a USP não tem transparência, embora o sr. tenha divulgado o valor das reservas financeiras. O sr. concorda?

 
Marco Antonio Zago

 Temos que progredir para tornar públicos os gastos. Nunca na história da USP houve tanta disponibilidade para abri-los. Nunca a vida financeira da universidade foi examinada com lupa de todos os lados. A USP é um enorme transatlântico que não tinha uma organização muito clara entre seus setores. Apesar de tudo, o orçamento da universidade é bem conhecido e os recursos que são repassados pelo governo também. Fui presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e trabalhei num sistema que permitia examinar com detalhes cada gasto. Mas havia uma estrutura montada. Na USP não existe, precisa montar. 

 
ISTOÉ

 Que medida imediata pode ser tomada? 

Marco Antonio Zago

 Criar uma controladoria da universidade independente do reitor para examinar dados financeiros. Quero que isso seja feito de maneira responsável por pessoas que entendem. Prefiro que os gastos sejam controlados por um órgão autônomo dentro da universidade. Espero que a controladoria permaneça futuramente. Estamos antecipando mudanças. Os conselhos de cada faculdade terão mais autonomia para escolher seus diretores. Há, no entanto, grupos e sindicatos que preferem dizer que na universidade não tem democracia. Eles gostam de discutir temas em assembleias, mas não encaminham suas demandas pelas vias institucionais, como deve ser feito.

 
ISTOÉ

  É preciso auditoria externa?

 
Marco Antonio Zago

 É disso que precisamos. Toda essa história sobre aumento de gastos na folha de pagamento é muito obscura na universidade. As pessoas têm opiniões diferentes de como se chegou à crise. Membros do Conselho Universitário que estavam lá quando as medidas foram votadas dizem que não sabiam de nada. Montamos uma comissão de sindicância que examinou dados e documentos. Havíamos decidido contratar uma empresa externa de auditoria para investigar o aumento de gastos com infraestrutura e construções, mas a decisão sofreu críticas do Tribunal de Contas do Estado. Grupos dentro da universidade também são contrários à contratação de uma empresa pela geração de custos. 

 
ISTOÉ

 Nos últimos 25 anos cresceu 231% o número de alunos de doutorado, 83% da graduação e 63% do mestrado. Não era esperado que os gastos aumentassem?

 
Marco Antonio Zago

 O aumento de gastos deve ocorrer, assim como houve também um aumento de recursos. De 2009 a 2013 tivemos um aumento de 32% em recursos do ICMS. Mas estamos em crise porque houve um aumento de 63% com salários. De 2007 a 2013, o valor de ICMS repassado para a USP por aluno passou de R$ 37 mil para R$ 47 mil. Não foi o crescimento da universidade que nos levou à crise. Nesse momento, não podemos atender a necessidades resultantes do crescimento da vida universitária, porque fizemos uma opção errada de comprometer demais o orçamento com o salário dos servidores não docentes. Também não conseguimos contratar mais docentes.

 
ISTOÉ

 Qual o erro de gestão na universidade que causou essa diminuição nos valores da reserva?

 
Marco Antonio Zago

 Não me cabe julgar nem se se trata de uma disputa entre essa gestão e a gestão anterior. Nenhuma instituição do mundo, pública ou privada, se mantém gastando mais do que recebe. Estamos gastando muito porque pagamos uma massa salarial grande. Temos R$ 360 milhões para pagar os salários, mas gastamos R$ 374 milhões. O que a universidade fez de errado? Comprometeu muito recurso com salários, contratando pessoal técnico-administrativo. Foram 2.400 técnicos administrativos e 400 docentes contratados no mesmo período. Nesse ritmo, a reserva vai se esgotar um dia.

 
ISTOÉ

 Mas o sr. foi pró-reitor na administração de João Grandino Rodas. Não percebeu que a luz amarela acendia?

 
Marco Antonio Zago

 A minha responsabilidade era ser pró-reitor de pesquisa da universidade. A gestão financeira nunca foi responsabilidade dos pró-reitores e de outros membros da administração. Eu mudei isso. Tenho feito uma gestão colegiada.

 
ISTOÉ

 Programas de inovação na graduação e atividades voltadas aos pesquisadores e à pós-graduação estão comprometidos por conta da crise?

 
Marco Antonio Zago

 No início do ano, o Conselho Universitário decidiu fazer um corte de aproximadamente 30% nos gastos. A universidade teve de se adaptar ao ritmo de funcionamento semelhante ao de 2010, quando a economia e as finanças da universidade estavam saneadas. Mas não houve nenhum reflexo negativo na pesquisa porque os grupos caminham com recursos externos. O que pode ter havido é que algumas expectativas não foram concretizadas. A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, por exemplo, tem um conjunto de departamentos básicos que estão mal acomodados desde que a faculdade foi instituída. Parte deles está num prédio histórico tombado, que não suporta mais instalações modernas. Havia uma expectativa legítima de se construir um novo prédio de laboratórios que terá de aguardar um ou dois anos.

 
ISTOÉ

 Por que o sr. considera que desvincular o Hospital Universitário da instituição e transferir o hospital universitário de Bauru para a Secretaria Estadual da Saúde são medidas positivas?

 
Marco Antonio Zago

 Teremos uma economia de R$ 450 milhões, quase 10% do orçamento da universidade. Vamos economizar com gastos de manutenção. Já os gastos com funcionários terão uma evolução mais lenta, porque não se pode transferir imediatamente os servidores para o Estado. Os hospitais são unidades de serviço público que precisam de médicos, enfermeiros, auxiliares. E, nesse momento, a USP não tem condições de contratar. O caso de Bauru é ainda mais grave porque precisa de servidores para completar as unidades atuais e ativar o hospital e não podemos contratar mais 600 profissionais. Além disso, por que a USP gastaria os seus recursos com fraldas, antibiótico e soro? A função da universidade é ensino e pesquisa. A atenção à saúde deve estar no âmbito da Secretaria da Saúde.

 
ISTOÉ

 Quando assumiu, o sr. afirmou que a prioridade seria revisar e melhorar as diretrizes curriculares de alguns cursos. Quais são as mudanças mais urgentes?

 
Marco Antonio Zago

 Alguns cursos precisam de mudanças voltadas à modernização. Até agora, tínhamos um modelo de centralização exagerado, no qual uma mudança curricular em qualquer curso poderia levar dois anos para ser implantada. Precisamos dar autonomia às faculdades. Também são necessárias mudanças de práticas pedagógicas e didáticas. A USP tem que usar mais instrumentos digitais como parte dos seus cursos. Não se trata de reforçar o ensino a distância, mas de trazer essas técnicas para nossas disciplinas tradicionais. Isso exige reestruturação e treinamento dos professores para o uso das plataformas. 

 
ISTOÉ

 Por que o Enem não é usado no processo seletivo da universidade?

 
Marco Antonio Zago

 Desconheço a razão pela qual nunca foi usado. Há um consenso de que o Enem deve ser incluído no processo seletivo, mas estamos propondo o debate sobre essa questão. Chegará um dia em que o Conselho Universitário anunciará a mudança. No passado, a universidade decidiu que não usaria, mas mudanças são necessárias. A Fuvest (o vestibular da USP) seleciona bons estudantes, por isso é um modelo que parece bom e justo. Mas tem defeitos e complicantes. O principal é que não temos aproveitado o potencial dos estudantes originados do ensino público, que muitas vezes não estão preparados adequadamente para o vestibular. 

ISTOÉ

  Como melhorar essa situação?

 
Marco Antonio Zago

 Estamos criando medidas adicionais para melhorar a entrada na USP; por isso, pensamos em usar parcialmente o Enem. Outra é o bônus, que permite ao aluno do ensino secundário que tiver um bom desempenho obter vantagem competitiva. Queremos que o aluno da escola pública tenha as mesmas chances do estudante da escola privada. No entanto, o problema é que 68% dos inscritos no vestibular da USP vêm do ensino privado. Então, a seleção está sendo feita antes. Mas a estrutura do vestibular terá de esperar mais um ano para ser mudada. Sabemos que, como está estruturado hoje, o exame não iguala oportunidades. 

 
ISTOÉ

 O sr. acredita que no Brasil às universidades públicas caminham num ritmo mais lento do que o mercado exige dos profissionais?

 
Marco Antonio Zago

 Falar das universidades públicas de  modo geral é colocar no mesmo caldeirão coisas muito diferentes. Cada faculdade tem a sua heterogeneidade. Cada curso olha para as necessidades do mercado de forma diferente. Na Escola Politécnica, a tradição é formar profissionais de alto nível para atividades econômicas e produtivas. Em outras, como a Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Sociais e Humanidades, há atividades mais intelectuais. As pessoas não se dão conta da contribuição que a universidade oferece na produção do conhecimento. Os grandes progressos da humanidade se dão a partir da universidade. Mas as pessoas olham apenas para o número de engenheiros e médicos formados a cada ano.