As primeiras provas da meganegociação com 55,2 mil Títulos da Dívida Agrária (TDAs) emitidos de forma fraudulenta, em novembro de 1988, para o pagamento da desapropriação da Fazenda Paraíso, que existe só no papel, apareceram na tarde da quarta-feira 13. Durante depoimento prestado ao corregedor do Senado Federal, Romeu Tuma (PFL-SP), o banqueiro Serafim Rodrigues de Moraes e sua mulher, Vera Arantes Campos, entregaram dois recibos de ordens de pagamento em favor do empresário paraense Vicente de Paulo Pedrosa da Silva. O casal apresentou ainda os canhotos dos cheques nº 863685 e 863665, assinados no final de 1988, também em nome de Pedrosa, num total de Cr$ 750 milhões, equivalentes hoje a US$ 1,3 milhão. A primeira vítima desses comprovantes bancários foi a versão de Vicente Pedrosa de que não fez negócio algum com o banqueiro Serafim e nada recebeu pelos TDAs, depois bloqueados pela Justiça. Para receber os títulos, Pedrosa teve o apoio do atual presidente do Congresso, senador Jader Barbalho (PMDB-PA), na época ministro da Reforma Agrária, que conseguiu com o então presidente José Sarney a desapropriação da fazenda-fantasma. Responsável pelo inquérito da Polícia Federal que apura o envolvimento de Jader na venda dos TDAs, o delegado Luís Fernando Ayres resolveu seguir todo o percurso do dinheiro para descobrir quem foi o destinatário final dos cheques pagos na compra dos títulos, a começar pela quebra dos sigilos bancários de Serafim, Vera e Pedrosa.

Nos depoimentos tomados por Tuma na superintendência da PF em São Paulo, Serafim e Vera também confirmaram ter visto Vicente Pedrosa cumprimentar Jader Barbalho no saguão do Hotel Hilton, logo após a entrega do cheque para fechar o negócio com os TDAs. De acordo com o casal, em seguida Barbalho e Pedrosa embarcaram em elevadores do hotel. Minutos depois, o empresário paraense voltou e seguiu com Vera até a agência central do Bamerindus em São Paulo, na rua XV de Novembro, onde ela fez a transferência para a conta de Vicente através de uma ordem de pagamento. Isso aconteceu no dia 12 de dezembro de 1988. Depois de informado por Tuma sobre os dois depoimentos, Jader comunicou por intermédio de sua assessoria que não se recorda se naquele dia esteve no Hilton.

Dicionário – Preparada com a ajuda de advogados, a versão agora contada por Serafim e Vera apresenta algumas diferenças em relação ao que antes revelaram sobre a participação de Jader no caso dos TDAs. “Quem recebeu o cheque foi o próprio chefão (Jader)”, disse Serafim ao subprocurador Ferraz, em conversa telefônica gravada há um mês e divulgada na edição 1654 de ISTOÉ. No depoimento ao corregedor do Senado, Serafim também teve um lapso de memória: “Não lembro. O que sei é que chefão é um termo que não está no meu dicionário”, desconversou. Na entrevista que concedeu a ISTOÉ no dia 6 de junho, no município paulista de Castilho, o banqueiro assegurou que, além de se cumprimentarem, Jader e Pedrosa mantiveram uma conversa. Vera também disse ao telefone que, na época da transação, sabia que Jader era o maior proprietário desse tipo de títulos no País. Nessa conversa, ela calculou ter desembolsado US$ 4 milhões na compra de Títulos da Dívida Agrária, quantia mais do que o dobro da que apresentou agora em comprovantes bancários. Serafim e Vera deverão dirimir esta dúvida no depoimento que prestarão, nos próximos dias, ao delegado Luiz Fernando Ayres. O primeiro dos interlocutores da gravação a ser ouvido pela PF será Gildo Ferraz. Na manhã da segunda-feira 18, ele deverá esclarecer por que citou o nome de um irmão do presidente do Senado na conversa telefônica que tiveram sobre a compra dos Títulos da Dívida Agrária.

 

Mentira – O delegado Ayres vai convocar também o empresário Vicente Pedrosa. Condenado a seis anos de prisão pelo golpe da Fazenda Paraíso, ele tem muito a se explicar. Por exemplo: em entrevista gravada a ISTOÉ, concedida a pedido do presidente do Senado, ele negou que tivesse feito qualquer negócio com o banqueiro Serafim, uma mentira já desmascarada por documentos bancários. Pedrosa será instado ainda a detalhar a participação direta de Jader Barbalho, quando ministro da Reforma Agrária, no processo de desapropriação da Fazenda Paraíso. Jader insiste em afirmar que, em momento algum, tratou desse assunto com Vicente Pedrosa, com quem diz só ter tido conversas sobre política. O que, aliás, é bem explicável, porque ambos são do PMDB paraense e, nas últimas eleições municipais, Pedrosa foi candidato a prefeito de Igarapé-Açu, com o apoio de Jader. A versão do empresário é bem diferente. “Havia muitos projetos de desapropriação prontos no Ministério da Reforma Agrária, entre eles o da Fazenda Paraíso. Pedi, então, uma segunda conversa com Jader, que me recebeu em Brasília e disse: “Tudo bem, vou mandar agilizar, vou mandar fazer o decreto”, contou Pedrosa a ISTOÉ. Na tentativa de justificar a propriedade de uma fazenda-fantasma, Vicente Pedrosa também acaba complicando a situação de Jader. Ele alega que os 11 fazendeiros que o acusam são, na realidade, proprietários de terras griladas. O Instituto de Terras do Pará (Iterpa) confirma apenas que uma delas é grilada, a Campos do Piriá, justamente a que pertenceu a Jader de 1975 a 1980.

Em meio a toda essa enrascada, o presidente do Senado faz de tudo para evitar que as denúncias sejam investigadas pelo Congresso. Na noite da terça-feira 12, Jader se reuniu em sua casa com os líderes Renan Calheiros (PMDB-AL) e Sérgio Machado (PSDB-CE), para avaliar sua complicada situação. No encontro, ele prometeu represálias caso o PT concordasse com a proposta de outros partidos de oposição e topasse criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigá-lo. Se for acuado, Jader Barbalho ameaça ressuscitar as acusações contra o empresário paulista Roberto Teixeira, amigo de Luiz Inácio Lula da Silva. A outra ameaça seria a revelação de uma conversa que teve com o ex-senador José Roberto Arruda durante um café da manhã pouco antes da renúncia do ex-líder do governo. O conteúdo dessa conversa tem tirado o sono do líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra (SE).

Desconfiança – Na última semana, ISTOÉ revelou a cumplicidade de Dutra na violação do painel e seu conhecimento da lista de votantes na sessão que cassou Luiz Estevão. Na segunda-feira 11, Dutra requereu a reabertura do caso do painel pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado. Pedido idêntico estava sendo analisado pelo senador Geraldo Althoff (PFL-SC), que desde as renúncias de Arruda e ACM defende a inclusão de Dutra nas investigações sobre a violação do painel. Althoff desconfia que a confissão de Dutra na Comissão de Ética, revelando parcialmente seu conhecimento sobre a fraude, pode esconder uma maior participação do petista no ilícito. Althoff quer identificar exatamente o nível de participação de Dutra. O depoimento mais aguardado nesta fase é justamente o do ex-senador Arruda. O pedido de Dutra para reabrir o caso já arquivado esconde uma filigrana regimental. O senador pede que a denúncia seja “desarquivada”, o que, segundo especialistas, não pode ser feito porque os senadores Arruda e ACM já renunciaram. O correto seria abrir uma investigação específica para tratar da participação de Dutra no caso.

Um dia depois de tentar se defender apresentando o requerimento pedindo a reabertura do caso, Dutra participou de uma reunião da bancada das oposições no Senado para decidir que providências tomar em relação às denúncias contra Jader Barbalho. Visivelmente nervoso, o petista foi contra as propostas dos senadores Jefferson Peres (PDT-AM) e Paulo Hartung (PPS-ES), que defendiam duas ações: investigar Jader no Conselho de Ética e criar uma CPI específica para apurar o caso dos Títulos da Dívida Agrária emitidos em 1988 para pagar a desapropriação da Fazenda Paraíso, de Vicente Pedrosa. Dutra também se desentendeu com o líder de seu partido na Câmara, deputado Walter Pinheiro (BA), que sugeriu a criação de CPI. Em meio à brigalhada, a bancada oposicionista divulgou nota na quarta-feira 13 negando a crise: “Não há racha nas oposições, apenas debate no seio de um bloco que nunca almejou ser monolítico, inclusive porque se guia por princípios democráticos.” O acordo tácito para – de uma tacada só – tirar Jader e Dutra da berlinda provocou reação dentro e fora do Congresso.

Pressionada pela opinião pública, que cobra ver tudo em pratos limpos, na manhã da quarta-feira 13, as oposições finalmente encaminharam ao Conselho de Ética pedido de apuração do Caso das TDAs. Os senadores também querem rastrear o dinheiro desembolsado pelo banqueiro Serafim e sua mulher para pagar os Títulos da Dívida Agrária adquiridos de Vicente Pedrosa. A proposta de investigação ainda vai aguardar uma troca de guarda no Conselho. O senador Ramez Tebet (PMDB-MS), presidente do Conselho, deixa o Senado na quarta-feira 20 para assumir o Ministério da Integração Nacional: “Não vou fazer mais nada. Esse problema será resolvido por meu sucessor no Conselho”, lavou as mãos Tebet, na terça-feira 12.

Ao mesmo tempo que acusa o PT para tentar evitar uma investigação mais profunda a seu respeito no Congresso, Jader Barbalho ganhou alguns apoios inesperados. O governador do Pará, Almir Gabriel (PSDB), com quem travou uma pesada batalha nas últimas eleições, defendeu apenas investigações pela “vias normais”, como Ministério Público e Polícia Federal. Mais uma vez, o presidenciável Ciro Gomes atropelou a posição de seu partido, o PPS. Com o mesmo oportunismo eleitoreiro em que saiu em defesa do mandato do ex-senador Antônio Carlos Magalhães, de olho no apoio do PMDB, ele tentou torpedear a proposta de criação de uma CPI para investigar as denúncias contra Jader. “Não compactuo com CPI desse tipo. É teatro. É assustador que na política uma única denúncia seja suficiente para determinar a saída de presidente de um poder”, criticou Ciro na quarta-feira 12. Um dos principais defensores da CPI é o líder do PPS no Senado, Paulo Hartung.

Desengavetador – Se entre os políticos Jader começa a receber os primeiros apoios públicos, fracassaram suas investidas para mudar o roteiro das apurações na Polícia Federal. Primeiro, ele esperava uma investigação limitada, mas o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, determinou que a PF fosse a fundo no caso dos TDAs. “São denúncias gravíssimas que precisam ser esclarecidas. Este cheque precisa ser rastreado para ver a quem beneficiou. Agora não tem mais jeito, não! Alguém vai ter de sair indiciado deste inquérito. Se ficar comprovado que o senador tem culpa, a própria Polícia Federal pode encaminhar ao Supremo Tribunal Federal pedido de abertura de processo. Se ele não for culpado, os que o estão acusando terão de ser responsabilizados”, declarou Brindeiro em entrevista publicada em O Globo na segunda-feira 11. Os esforços de Jader para ser o primeiro a ser ouvido no inquérito da Polícia Federal também não deram certo. O delegado Luiz Fernando Ayres resolveu só tomar o depoimento do presidente do Senado na etapa final dos trabalhos, quando já tiver ouvido todas as testemunhas e apurado as denúncias, especialmente o caminho trilhado pelo dinheiro que comprou os TDAs fraudados.

Colaborou: Andriana Souza e Silva (SP)

 

O que eles disseram

Em depoimento à Corregedoria do Senado:

1 Vera – “Antes de o Vicente subir, encontrou com o Jader no saguão do hotel. Houve só um cumprimento de longe entre os dois. Depois cada um entrou num elevador diferente”
Serafim – “Ele deve ter ido ao banheiro”
2 Serafim – “Não vi dar o cheque para ele”; “A palavra chefão não está no meu dicionário. Eu nunca usei a palavra chefão”
3 Vera – “Dei dois cheques. Um de 50 milhões, outro de 700 milhões da moeda da época. Isso equivale a quase 1 milhão e 400 mil dólares”
4 Serafim – “Eu até quero ouvir a gravação. Ele (o advogado) que inventou essa história”

Na conversa com o advogado Gildo Ferraz

1 Vera – “Ele pegou o cheque e saiu (…) Quando eu olho a uma distância assim vejo no hall bem grandão, que eu olho lá no fundo, o Jader. (…) A gente já sabia na época que quem mais tinha TDA no Brasil era ele”
2 Serafim – “Quem recebeu o cheque foi o chefe (Jader), o chefão. Estava atrás do hotel na hora do pagamento”
3 Vera – “É um cheque de quatro milhões, na época”; “Era um por um, era quatro milhão, o cheque era de quatro milhão”
4 Gildo – “Você recorda daquele caso da compra de títulos? (…) Lá com um irmão do Jader, né?”
Serafim – “Lembro, lembro. (…) É com um homem dele”