Um prosaico caju está na origem de uma fascinante aventura literária. Em 1951, de passagem pelo Rio de Janeiro durante uma viagem de circunavegação pela América do Sul, a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979), com sua curiosidade peculiar, resolveu sentir o gosto da exótica fruta. Teve uma reação alérgica que a impediu de continuar a viagem e muito menos abrir os olhos por vários dias. Tratada em Petrópolis pela anfitriã, a urbanista Lota Macedo Soares – autora do projeto do Aterro do Flamengo –, Elizabeth respondeu pelos cuidados com uma inesperada e avassaladora paixão. O amor que levou a poeta a viver no Brasil por 15 anos, ganhou os palcos no monólogo Um porto para Elizabeth Bishop, estrelado por Regina Braga, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo. Escrito pela jornalista Marta Góes e dirigido por José Possi Neto, o espetáculo não narra apenas os lances muitas vezes trágicos do relacionamento entre as duas mulheres. Também faz um saboroso retrato do País durante os anos 50 e 60, tendo por base o olhar estrangeiro da americana.

Movimentando-se num cenário de linhas modernistas, Regina encarna com desenvoltura a poeta que escreveu no Brasil livros como Questions of travel e Poems, este último responsável pela sua premiação com o Pulitzer. Mas os poemas são raros no espetáculo. “Não queria que a peça virasse um sarau”, afirma Marta, que, juntamente com Regina e Possi Neto, decidiu pela inserção de apenas sete deles, escolhidos a dedo numa obra genial de pouco mais de 100. Banho de xampu, por exemplo, é declamado quando Elizabeth assume seu amor por Lota, banhando-se numa bacia magicamente iluminada, enquanto ao fundo explodem fogos de artifício numa projeção em preto-e-branco. “No teu cabelo negro brilham estrelas (…)/ Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia/Amassada e brilhante como a lua.” Na mesma linha encontra-se um sem título e quase inédito, que Marta apelidou de As amantes.

O poema foi escrito à mão, depois emoldurado, enfeitado com desenhos em aquarela feitos pela autora e dado de presente à dinamarquesa Lilli Correia de Araújo, dona do Pouso do Chico Rei, em Ouro Preto, onde Elizabeth passava temporadas desde 1965. Lilli comandou a restauração da Casa Mariana, comprada pela americana na cidade histórica e assim batizada em homenagem à amiga e mestra Marianne Moore, igualmente uma poeta de renome nos Estados Unidos. Quem trouxe o fato à tona foi o artista plástico mineiro José Alberto Nemer, que, após conhecer o poema na casa de Lilli, o transcreveu, imprimiu numa gravura e deu de presente de casamento para sua mulher. Tempos depois, o próprio Nemer enviou uma cópia aos Estados Unidos a pedido do pesquisador Lloyd Schwartz, que o publicou numa reportagem sobre a poeta, de cuja obra ele é um expert. Até hoje os versos não integram nenhuma edição completa de Elizabeth Bishop.

Trata-se de uma história curiosa, mas o grande momento lírico do espetáculo é a declamação do poema Uma arte, situado entre os melhores da autora. É quando Elizabeth se mostra abatida pelo suicídio da amante Lota, morta em seus braços quando passava uma temporada em Nova York, em 1967. O relacionamento nada fácil das duas está muito bem representado na peça, mas não é o seu foco principal. Mais do que um caso escandaloso para a época, o que interessou a Marta foi mostrar a visão ao mesmo tempo crítica e encantada que a americana tinha do Brasil. Já na abertura, ela comenta a mistura de México e Miami que a atraía e a enojava.

Após ler sua vasta correspondência, entrevistas, toda a prosa e artigos e contos escritos para a imprensa americana, Marta pinçou comentários espirituosos de Elizabeth sobre a índole do brasileiro. “Ela fez isto muito bem, percebeu como ninguém nossos pequenos traços”, comenta a autora. Através de um texto engenhoso, no qual a poeta não se derrama em confidências enfadonhas, mas se dirige a interlocutores imaginários, chega-se a um perfil multifacetado da personagem, uma viajante compulsiva e alcoólatra que dizia ter vivido no Brasil os momentos mais felizes de sua vida.

A atração da jornalista pela aventura tropical de Elizabeth Bishop não se deu por acaso. Marta Góes, que passou a juventude em Petrópolis, nunca cruzou com a vizinha famosa – afinal, nasceu em 1953 –, mas foi marcada pelas histórias anedóticas sobre o casal de mulheres. “Até ganhar o Pulitzer, ninguém dava muita bola para Elizabeth. O que tenho mais na memória era o ruído que Lota provocava. Ela fazia questão de se mostrar muito masculina, dirigia carros importados a mil por hora, falava palavrão. Era impossível não notá-la.” Mesmo no espetáculo sua presença é flagrante como sombra que tudo espreita.