No papel de seda azul-claro, garranchos quase ilegíveis expressam uma revolta curta e grossa. “Pai, as coisas ficam muito boas quando a gente esquece, mas acontece que eu não esqueci a sua covardia. Você me fez menor que você, estou te mostrando a porta da rua para que saia sem lhe bater.” O bilhete, que faz eco ao livro Carta ao pai, de Franz Kafka, e usa trechos da música Judiaria, de Lupicínio Rodrigues, é lido com perplexidade e arrependimento por Seu Wilson, personagem vivido por Othon Bastos na abertura do filme Bicho de sete cabeças, um dos lançamentos brasileiros mais aguardados do ano, em cartaz nacional na sexta-feira 22. Foi escrito pelo jovem Neto, emocionante papel que deu a Rodrigo Santoro o prêmio de melhor ator nos mais recentes festivais de cinema de Brasília e do Recife. A razão de tanta mágoa – que a diretora paulistana Laís Bodanzky mostra com tanto vigor e segurança no seu longa-metragem de estréia – é que uma vida foi praticamente roubada. Flagrado com um cigarro de maconha, Neto é internado pelo pai num manicômio e passa a viver uma via crucis da qual só se livra depois de três anos, muitos coquetéis de sedativos e uma série de eletrochoques. Entrou naquele inferno na terra cheio de juventude e saiu o tal bicho-de-sete-cabeças.

A história é real. Foi baseada no livro O canto dos malditos, assombroso relato autobiográfico do ator e escritor paranaense Austregésilo Carrano, 43 anos, hoje um dos mais ativos militantes do movimento antimanicomial. Laís, 31 anos, filha do cineasta Jorge Bodanzky, tomou conhecimento do livro quando integrava um grupo de pesquisa sobre a questão dos manicômios no Brasil, onde ainda existem 70 mil pacientes entregues a procedimentos psiquiátricos abomináveis. “Tinha uma visão preconceituosa do assunto e ao ler o livro tomei contato pela primeira vez com a visão de quem viveu o problema na pele”, conta Laís. “Muitos não conseguem, mas Carrano deu a volta por cima e soltou um grande grito para que outros não passem pelo mesmo.”

Ao adaptar o livro para as telas, o objetivo de Laís foi o mesmo de Carrano. Por isso, fez questão de trazer para os dias de hoje o drama vivido pelo autor nos anos 70: “Muita gente pensa que o problema dos hospitais manicomiais acabou com o fim da ditadura. Não é verdade. Estes verdadeiros campos de concentração, que Carrano chama de depósitos humanos, continuam aí.” Para que a denúncia desta realidade fosse eficiente, Laís optou por uma linguagem seca, quase documental. Filmou tudo com câmera na mão e usou como cenário dois hospitais desativados de São Paulo, ambos fechados recentemente por maus- tratos aos internos.

Angústia – A sensação de urgência e angústia é permanente no filme. Em cortes rápidos, a diretora situa o espectador no universo classe média baixa de Neto, um adolescente sem muita perspectiva, que usa o skate e a pichação para se fazer notado pela sociedade. Aí acontece o episódio do cigarro de maconha. Como se tragado por um pesadelo, Neto vai descendo degrau por degrau em direção ao inferno.
 

Numa interpretação impressionante, Rodrigo Santoro se revela um ator maduro no papel do jovem Neto. Afirma que adquiriu a garra para o papel da vontade absoluta de fazê-lo: “Fui convidado pela Laís por indicação de Paulo Autran, com quem havia trabalhado em Hilda Furacão. Quando li o livro fiquei chocado. Liguei para o autor, conversamos bastante e tive a certeza de que deveria encarnar o personagem.” Para melhor construir a figura de Neto, o ator leu atentamente as minuciosas descrições de Carrano a respeito do sofrimento que antecedia uma sessão de eletrochoque ou dos efeitos da medicação. Também conversou com internos e assistiu a todas as fitas disponíveis sobre o tema, entre eles Um estranho no ninho, de Milos Forman. A influência do filme estrelado por Jack Nicholson é flagrante, especialmente nas cenas que mostram o clima de amizade entre os internos. No primeiro manicômio por que Neto passa, destaca-se a figura de Ceará (Gero Camilo), que encarna de forma impressionante um nordestino manco. Ele sempre reage aos maus-tratos aplicados em Neto cantando a engraçada música Ela deu o rádio, de Genival Lacerda.

Também sobressaem-se o altivo Rogério (Caco Ciocler), um viciado em drogas injetáveis que ensina Neto a não se entupir de comprimidos, e o interno chamado Jornalista (Lineu Dias), de quem o jovem aprende que para sobreviver dentro de um hospício é fundamental o fingimento. Jornalista, cuja figura foi calcada num personagem real, é dono de uma das falas mais fortes do filme, referência a um poema de Fernando Pessoa sobre o fingimento do poeta. “Uma pessoa que sofre a perda de um grande amor pode chegar à loucura. Uma pessoa que passa fome pode chegar à loucura. Você tem que fingir que é louco para não enlouquecer.”

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Clima realista – De alto a baixo, trata-se de um elenco impecável, incluindo a mãe de Neto, defendida por uma Cassia Kiss de poucas palavras e olhares vazios, que expressa sua falta de comunicação com o filho pelo silencioso vício do cigarro. Até os figurantes impressionam e não são poucos os que, ao final do filme, se perguntam se não se trata de internos de verdade. Mas todos são atores, garante Laís. Contribuiu para o feito a preparação de elenco do diretor de teatro Sérgio Pena, que desenvolve um trabalho com doentes mentais. Vagando como zumbis pelos pátios do manicômio, os figurantes contribuem para o clima realista do filme, que custou apenas R$ 1,5 milhão. Para realizar estas cenas, Laís buscou referências nos vários documentários sobre o problema dos manicômios, especialmente O profeta das cores, de Leopoldo Nunes.

Todo o esforço conjunto de nada valeria não fosse a interpretação surpreendente de Rodrigo Santoro. Ex-estudante de jornalismo, curso que abandonou no sexto período ao ingressar na oficina de atores da Rede Globo, ele tem uma carreira quase inexistente no teatro. Até hoje só participou de uma peça, nada muito séria, D’Artagnan e os três mosqueteiros. Em seu primeiro papel no cinema, o ator fluminense de 25 anos consegue superar em muito a boa atuação como o seminarista dividido entre a fé e o desejo de Hilda Furacão. No segundo semestre, ele volta às telas em Abril despedaçado, novo trabalho de Walter Salles, baseado no livro do escritor albanês Ismail Kadaré. No épico sobre uma disputa de famílias passado no sertão baiano, Santoro interpreta Tonho, jovem que vinga a morte do irmão e também fica jurado de morte. “Acho maravilhoso o que está acontecendo comigo. É um momento profissional iluminado. Foram dois presentes que recebi e procurei fazer com a maior dedicação e competência profissional.” Que sirva de exemplo a receptividade de Bicho de sete cabeças no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, onde levou os nove principais prêmios, entre eles os de melhor filme, roteiro e direção. Antes da exibição, Rodrigo Santoro foi preconceituosamente vaiado pela platéia, que não acreditava no talento do galã global. Ao final, foi ovacionado. 

Estação para o inferno

Austregésilo Carrano era um hippie de 17 anos quando seu pai, depois de encontrar um cigarro de maconha no seu bolso, o convidou para visitar um amigo no Hospital Psiquiátrico Espírita Bom Retiro, em Curitiba, e lá o deixou sem ele entender nada. Na época, o diretor da instituição era o psiquiatra Alô Ticolaut Guimarães, já falecido. “Este senhor me aplicou 21 eletrochoques com voltagem que variava entre 180 e 460 volts, levando-me a defecar em mim mesmo”, acusa Bueno, que moveu o primeiro processo no País contra erro psiquiátrico. Os acusados são a Federação Espírita do Paraná, proprietária do Hospital Bom Retiro, e o psiquiatra Alexandre Sech. Durante três anos, de 1974 a 1977, Carrano passou por três instituições manicomiais em Curitiba. Numa de suas fugas, foi internado no Pinel, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Sua trágica experiência está narrada em O canto dos malditos, editado pela primeira vez em 1990, pela Editora da Universidade Federal do Paraná, e que agora será relançado pela editora Rocco.

Entre as sequelas colecionadas ficou uma fissura na base craniana, resultado das sessões de eletroconvulsoterapia, e a perda de dez dentes em razão da intensa medicação. Segundo ele, a situação não mudou dos anos 70 para cá. “Visito hospício toda hora e estou cansado de ver pavilhões com pátios de 20 metros quadrados cheio de gente defecada. Isto me revolta. Gastam-se R$ 450 milhões por ano, terceira maior despesa do SUS, para estas pessoas viverem como mendigos.”


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