A Ilha dos Astronautas Anciãos, a Península das Religiões OVNI, o Mar da Viagem Imaginária e a Trilha Hippie são algumas das regiões cartografadas no “Mapa” desenhado à mão pelo artista chinês Qiu Zhijie na parede da rampa do Pavilhão da Bienal. Esse mapa de cidades fictícias e locais utópicos funciona como um prólogo da 31ª Bienal de São Paulo, dedicada a pensar o papel da arte em um contexto de incertezas políticas, sociais e culturais. “As manifestações de junho de 2013 aconteceram apenas dois meses após recebermos o convite para a curadoria”, diz o espanhol Pablo Lafuente, do coletivo curatorial que assina esta edição do evento, composto por sete profissionais. A equipe trabalhou, portanto, no calor das manifestações que se alastraram por cidades brasileiras e elaborou uma exposição em resposta ao que ouviu. “A Bienal funciona como uma caixa de ressonância, para amplificar a insatisfação das ruas”, diz ele. Para lidar com o estado de transição que as sociedades vivem hoje, o grupo decidiu trabalhar com o que “não existe”. O resultado é a exposição “Como (…) Coisas que Não Existem”, título de formulação variável na qual os verbos são alternados e aplicados de acordo com a vontade do espectador. Leia-se, portanto, “Como Procurar, Reconhecer, Usar, Imaginar, Mapear, Materializar, Acreditar em Coisas que Não Existem”.

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CARTOGRAFIA UTÓPICA
Com formação de calígrafo, chinês Qiu Zhijie criou um
mapa das ideologias do mundo contemporâneo

A Península das Religiões OVNI talvez não exista, mas a arte produzida em regiões consideradas remotas do planeta, marginais aos grandes centros, como Indonésia, Chipre, Índia, Senegal, Angola, Bolívia, Peru, Turquia, Líbano, Egito, Romênia, Rússia e Bósnia e Herzegovina, existe e está muito bem representada nesta exposição. “Falamos de coisas e lugares que de fato existem, mas que não estão estabelecidos por nossos parâmetros políticos e culturais”, diz a curadora associada Luiza Proença. Já a representação brasileira busca escapar ao eixo Rio–São Paulo e joga um foco de luz sobre a produção do Pará, de Mato Grosso do Sul e do Maranhão.

O trabalho do paraense Éder Oliveira é um exemplo dessa diretriz descentralizadora que orienta a exposição. O artista realizou nos muros de São Paulo e nas paredes da Bienal uma série de pinturas murais que têm como objeto jovens envolvidos em crimes, cujas fotografias são publicadas nas páginas policiais dos jornais. Estigmatização social e discriminação racial são denunciadas pela obra.

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31ª Bienal de São Paulo, Como (…) coisas que não existem/
Fundação Bienal de São Paulo, Pavilhão Ciccillo Matarazzo, SP/ de 6/9 a 7/12

O estado transitório é um dos grandes eixos da mostra e aparece na obra da baiana Virginia de Medeiros. A videoinstalação “Sergio e Simone” retrata a transitoriedade de gêneros e a miscigenação religiosa em um só personagem. Simone é um travesti que cuida de um santuário para o culto de orixás e Sergio é um pastor evangélico messiânico. Ambos são a mesma pessoa.

A crítica às indústrias da fé e o crescimento das religiões evangélicas e neopentecostais são o mote do filme “Inferno”, da israelense Yael Bartana. O cenário é a réplica do Templo de Salomão construído em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus, e o roteiro imagina seu futuro trágico, repetindo profeticamente a sua destruição, até restar um muro de lamentações. Entre as imagens do filme, há passagens impagáveis, como um fiel de túnica branca andando de skate nas ruas de São Paulo e a especulação turística em torno do culto aos escombros. Os trabalhos do coletivo argentino Etcétera e do cineasta espanhol Val del Omar (1904-1982) também evocam imagens hereges como crítica às relações promíscuas entre a Igreja e as ditaduras e políticas repressivas.

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RELIGIÃO E VIOLÊNCIA 
Éder Oliveira, de Belém do Pará, fez pinturas murais com imagens de jovens
envolvidos em crimes (no alto); e o coletivo argentino Etcétera (acima) apresenta
instalação com obras de León Ferrari, como uma virgem dominada por uma serpente

Alternam-se, assim, diversas referências a cultos e armas, proferidas em várias línguas, sugerindo que o mundo todo vive um mesmo estado de incerteza. Outro ponto alto é “Wonderland”, do artista turco Halil Altindere, que adota a linguagem universal do videoclipe de rap para denunciar a perseguição às comunidades de etnia curda e a destruição de assentamentos seculares, no centro de Istambul.

Mas nem só de violência e trevas é feito o vigor imaginativo da 31ª Bienal. O vídeo da dupla Ines Doujak e John Barker (Austria e Inglaterra), por exemplo, é uma lufada de bom humor, trabalhando com música, fantasia, nonsense e surrealismo. Na proposta arquitetônica do andar térreo do edifício, outra mensagem de esperança, em que a curadoria procura passar o recado de que as coisas podem se transformar para melhor.

Intitulado de “Área Parque”, esse espaço teve suas portas abertas para os usuários do Parque do Ibirapuera e será palco de saraus, poesia hip-hop e performances de artistas da periferia. “Gostaríamos de usar o térreo como um espaço que ainda não é da arte, para ser usado por quem ainda não decidiu se se interessa por arte contemporânea. Será um espaço para provocar uma curiosidade e funcionar como uma entrada”, afirma Pablo Lafuente. Embora não possa ser usado como pista de skate, como a marquise, pelo menos é um espaço sem catracas.

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DIÁSPORA E FANATISMO
"El Dorado" (no alto), da artista Danica Dakic, dos Balcãs, confronta a paisagem
europeia do século XIX com jovens imigrantes; "Inferno", de Yael Bartana,
imagina a destruição do Templo de Salomão em São Paulo

Fotos: Pedro Dias; Paula Alzugaray