Numa tribo, cabe ao índio mais velho a importante tarefa de perpetuar as histórias de seu povo. Embalado por rituais cerimoniosos, ele conta as lendas, relata as experiências dos antepassados e mantém vivas as tradições e costumes de seu grupo. No mês passado, durante uma blitz de duas semanas nos arredores do Parque Nacional Indígena do Xingu, no Mato Grosso, o paulistano Antonio Kehl, de 44 anos, recebeu a incumbência de relatar a experiência vivida ao lado de 12 índios da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), de seis fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e de um da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Ex-hippie”, padeiro amador, fotógrafo e artista gráfico profissional, Kehl viajou como representante da organização não-governamental Instituto Socioambiental (ISA), com ajuda de custo de R$ 300. Ao final da viagem, cumpriu à risca a missão de passar adiante a história da qual fez parte. O resultado foi um diário comovente e uma bateria de 540 fotos que testemunham a destruição promovida por madeireiras, serrarias, plantações agrícolas e fazendas de gado nos arredores do parque que foi criado em 1961 e se tornou um símbolo da política indigenista brasileira.

Espremida em caminhonetes precárias, a equipe de 20 pessoas não conseguiu sequer chegar ao coração da reserva que ficou mundialmente famosa pela tradicional festa de celebração dos mortos, o Quarup. No caminho, numa faixa de dez a 20 quilômetros ao redor da área de preservação, a equipe autuou 32 pessoas, apreendeu madeira de 30 serrarias, notificou e interditou as oficinas de seis posseiros e distribuiu multas ambientais num total de R$ 389.699,80. Seria bom se isso fosse o bastante para estancar o problema. No ano em que comemora quatro décadas, a reserva indígena do Xingu não poderia estar em pior situação. Um trecho do diário de Antonio Kehl reproduz com fidelidade o que acontece na calada da mata. “Em dez dias viajando ao redor do parque não encontramos sequer uma atividade legal. E existe quase a certeza de que, mesmo aqueles que foram autuados, multados e tiveram sua madeira apreendida, darão um jeitinho e, mês que vem, estarão cortando novamente.” Em seu relatório de viagem, Alberto Gonçalves da Silva, funcionário do Ibama que coordenou a equipe, explica que a expedição não cumpriu o itinerário planejado porque identificou dezenas de irregularidades ambientais no meio do caminho. Silva pede providências urgentes para que outras três equipes sejam enviadas à região o mais rápido possível, especialmente durante a seca, que se prolonga até novembro, justamente o período em que os madeireiros fazem a festa, derrubando as árvores que lhes aparecem pela frente.

Tiroteio – Um dos primeiros territórios indígenas demarcados no País, a reserva do Xingu ocupa 2,8 milhões de hectares, o equivalente a quatro milhões de campos do estádio do Maracanã. Em harmonia entre si e com a natureza, ali vivem quatro mil índios de 14 etnias distintas. Cada qual tem sua cultura, dança, artesanato e idioma próprios. A região também é rica pela diversidade de animais e de plantas que acolhe. Seu terreno é um misto entre o cerrado e a Amazônia, um oásis de floresta em meio ao chamado arco do desmatamento e do fogo. “A reserva está em pleno tiroteio”, resume o indigenista André Villas Bôas, do Instituto Socioambiental e coordenador do Programa Xingu, que busca fiscalizar e guardar asfronteiras do parque. O cenário é de guerra. À oeste da reserva existem mais de 700 serrarias. Ao sul, a monocultura da soja se alastra sem parar. Na porção leste, predomina a pecuária. E as madeireiras espalham-se para todos os lados. “A única ameaça ambiental da qual o parque está livre é o garimpo. Pelo menos por enquanto”, diz Villas Bôas, que já morou no Xingu e visita a reserva de seis a sete vezes ao ano. Há ainda um agravante: a poluição das cabeceiras dos rios. O indigenista compara o parque a um ralo que absorve a poluição dos rios que nascem fora da reserva e deságuam no rio Xingu. “A sujeira deixada pelos pescadores, pelas fazendas, pelas criações de gado e pelos madeireiros contamina a água que bebemos e de onde tiramos o peixe que comemos”, conta o índio Alupá Kaibi. “Nossa riqueza é a terra, o índio depende da natureza para sobreviver, mas falta esclarecimento ao homem branco”, relata o representante da tribo dos kaibi, originária do Pará.

Entre as cenas capturadas pelas lentes do fotógrafo Antonio Kehl, a mais devastadora é a exploração desenfreada e predatória da madeira. As próprias imagens de satélites já denunciam a devastação nos arredores do parque. Madeiras como cedro, ipê, itaúba e peroba são derrubadas diariamente para abastecer o mercado brasileiro, sobretudo o Sul e o Sudeste do País. Só num dia de trabalho da equipe de índios e fiscais do Ibama e da Funai, conseguiu-se apreender 120 toras de madeira e autuar 17 caminhões. O grupo acompanhou também o velho artifício dos madeireiros de fugir às pressas, para evitar ser autuado pelos fiscais federais. Em boa parte das vezes, os madeireiros abandonam seu acampamento deixando comida, combustível e muita madeira no chão, para voltar tão logo os fiscais tenham partido. Se a destruição em massa prolifera a olhos nus na reserva indígena mais popular do Brasil, é de se imaginar o que acontece nas aldeias escondidas nos rincões mais remotos do País.


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