Para quem cresceu sonhando dar a volta ao mundo num veleiro, o escultor carioca Ernesto Neto, 36 anos, não poderia estar em lugar melhor. Ele ancorou na Artiglierie no Arsenale, onde as embarcações venezianas eram construídas entre os séculos XVI e XIX. Neto também é o único artista brasileiro selecionado para a mostra Plataforma da Humanidade, a principal seção da 49ª Bienal de Veneza, inaugurada no sábado 9 e em cartaz até 4 de novembro na peculiaríssima cidade italiana. Ele trouxe para o evento a obra O bicho, uma instalação olfativa, feita de laicra e recheada de açafrão, cravo e pimenta, que brinca com o mesmo senso de equilíbrio antigamente usado nas velas de seu barco solto ao vento da Baía de Guanabara. Para definir os princípios básicos que determinam a leveza de seus pêndulos escultóricos, o artista também estudou mecânica quântica em paralela paixão adolescente pela astronomia. Foi um desenrolar de situações vividas desde o curso de engenharia até a descoberta de uma relação “afetiva” com os tecidos, que proporcionaram a ele o desenvolvimento de uma série de instalações que há cinco anos vem ganhando destaque internacional.

Toque – Atualmente, o trabalho de Ernesto Neto é visível em três diferentes áreas de Veneza. No Pavilhão Brasil dos Giardini di Castello – espaço tradicionalmente reservado para as 31 representações fixas da grande mostra – encontra-se a instalação penetrável O nascimento da deusa – do cosmo ao corpo, confeccionada em isopor, aviamentos e laicra. Por suas características, é como se a obra convidasse o visitante ao aconchego intra-uterino. “A melhor forma de assimilar algo é através do tato. Há um ponto de sutileza nas coisas que o olho não capta; portanto, é necessário tocar”, explicou Neto a ISTOÉ. “Essa liberdade de as pessoas entrarem e terem uma relação tátil é uma experiência que assimilei desde criança, através de Lygia Clark e Hélio Oiticica”, conta. “Mas, quando a Lygia fez suas obras lúdicas, as pessoas eram muito mais inibidas. Hoje, eu faço estas esculturas e tenho quase que dizer, ‘ei, calma aí galera’, tamanha a excitação das pessoas.” Na verdade, a ambientação idealizada é uma autêntica sala de descanso, apropriada para uma pausa no passeio pelos 31 pavilhões do jardim da centenária bienal.

Cores – Neto divide com Vik Muniz a representação brasileira. Há 18 anos vivendo em Nova York e com grande penetração no circuito internacional de arte, o paulistano Vik Muniz acaba de consagrar-se como artista na sua própria terra, pois iniciou sua trajetória artística nos Estados Unidos. Muniz está expondo a série Pictures of color, painéis com releituras de obras de artistas como Yves Klein, Gerhard Richter e Vincent van Gogh, segundo o Pantone, a escala gráfica de cores. Germano Celant, ex-curador geral da 47ª Bienal de Veneza, em 1997, e atual responsável pela curadoria brasileira em Veneza, organizada pela Brasil Connects (nova marca da Associação Brasil + 500), endossa as escolhas de Neto e Muniz em razão de suas projeções internacionais. “Veneza não é uma arena experimental para descobrir novos talentos”, afirmou Celant em entrevista coletiva.

Visibilidade – Curador associado da Fundação Solomon Guggenheim de Nova York, Celant contribuiu para o Brasil alcançar uma visibilidade jamais obtida na Bienal de Veneza, organizando mais duas mostras pátrias. As outras “sedes” brasileiras na cidade das gôndolas são o Palazzo Fortuny, onde se repete a dobradinha Neto e Muniz, e o Museu Peggy Guggenheim, no qual foram instalados uma escultura de Tunga, feita em bronze, ferro e ímãs, e um painel fotográfico de 15 m x 7 m, de Miguel Rio Branco, bem diante do Grande Canal, a via veneziana mais movimentada. E ainda há a Igreja San Giacomo Dell’Orio, que recebeu 20 imagens de santos negros do barroco, datadas dos séculos XVII e XVIII. No entanto, mesmo com obras raras e artistas vigorosos representando a história e a modernidade da arte e da cultura nacionais, Celant sucumbiu ao folclore montando exposição com roupas e objetos pessoais de Carmen Miranda em que se destaca uma imagem bastante estereotipada do Carnaval.

No geral, contudo, a 49ª Bienal de Veneza será, mais do que uma plataforma para promoção da arte brasileira, um ponto de vista privilegiado de uma completa “visualização da humanidade”, conforme palavras do suíço Harald Szeemann, curador-geral do evento. Nesta primeira mostra do século XXI, a bienal destacou os artistas contemporâneos que enfocam seus trabalhos na figura humana. O resultado é visível em corpos escultóricos, performáticos ou digitalizados espalhados por toda parte. E, nesse contexto, o trabalho de Ernesto Neto guarda uma relação visceral: “A vida e o corpo humano são a espinha dorsal do meu trabalho. Toda a estrutura, toda a armação da natureza que possibilita a vida e a reprodução são fundamentais para mim”, diz Neto, que viajou para Veneza acompanhado da mulher, a artista gráfica Lili Neto, e do filho, Lito, de quatro meses.

Vida – Sua instalação O bicho está muito bem situada no Arsenale, ao lado de duas obras emblemáticas, O fim do século XX e Olivestones, ambas de Joseph Beuys. O artista alemão, que orientou seu trabalho para a simbologia da vida, depois de ter sobrevivido a um acidente aéreo, é um dos faróis da grande mostra, como aponta o curador Szeemann no catálogo da bienal. “Esperamos que, com o fim do antigo século e o começo do novo, nosso calor seja suficiente para gerar vida na matéria não-orgânica”, escreve ele. A vida e as experiências sensoriais são, portanto, abordadas por todos os representantes dos 63 países selecionados. O artista britânico Ron Mueck, por exemplo, que executa esculturas hiper-realistas, causa impacto pela grandeza de seu Boy, postado à entrada da mostra do Arsenale, enquanto as miniaturas humanas do coreano radicado em Nova York, Do-Ho Suh, exigem um olhar mais detalhista. São visões antagônicas da arte.

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