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“Leninista” O Sumo Pontífice alemão prefere uma Igreja com menos fiéis, mas com católicos mais coerentes

O mais polêmico episódio protagonizado pelo papa Bento XVI fornece pistas dos rumos que seu pontificado deve tomar. Trata-se do discurso que Sua Santidade pronunciou em 12 de setembro de 2006 na Universidade de Regensburg, na sua Alemanha natal. Nesta fala, o papa citou Manuel II Paleólogo, imperador bizantino do final do século XIV: “Mostre-me o que Maomé trouxe de novo e você encontrará apenas coisas más e desumanas, como a ordem de espalhar pela espada a fé que ele pregou.” A citação irritou profundamente a comunidade muçulmana em todo o mundo e o papa “lamentou” ter ofendido o Islã, mas não retirou o que havia dito. Teólogo rigoroso e intelectual sofisticado – ele chegou a travar um diálogo com o filósofo alemão Jürgen Habermas e a elogiar Karl Marx em livro recente –, Bento XVI não tem papas na língua e defende com unhas e dentes a identidade católica. Para ele, ao contrário de seu antecessor, João Paulo II (1978-2004), aumentar o número de fiéis importa menos do que tornar a Igreja mais coesa. Quase um “papa leninista”, diria um gaiato (Vladimir Lênin, líder da revolução bolchevique de 1917, costumava dizer que “mais valem poucos, mas bons”). Por isso, ele não se faz de rogado ao defender a volta do latim e do canto gregoriano nas missas e, principalmente, os dogmas tradicionais da Igreja. Mas apego aos dogmas é algo difícil de se imaginar no Brasil, o maior país católico do mundo, onde os fiéis consideram que “o barato de ser católico é fazer parte de uma religião que não precisa ser seguida à risca pela maioria dos fiéis”, na feliz definição do sociólogo Antônio Flávio Pierucci. De fato, os católicos brasileiros, em sua maioria, ignoram solenemente as interdições do Vaticano, como o divórcio, o uso da camisinha e até o aborto. Nos trópicos, o papa talvez esteja pregando no deserto. Mas isso dificilmente abalará as convicções doutrinárias de Bento XVI. E ele vem ao Brasil defendê-las.

Mas diversamente do que supõe o senso comum, o pontífice alemão não é apenas um crítico do modernismo hedonista – todo bispo de Roma o é, por dever de ofício. Nem tampouco o ex-prefeito para a Congregação da Fé (antigo Santo Ofício) é a continuação do grande inquisidor da Teologia da Libertação, como afirmam suas viúvas. Para surpresa de muitos, Bento XVI se tornou um inusitado defensor da racionalidade clássica abandonada pelo Ocidente relativista e desafiada pelo Islã integrista. “Onde estava Deus?”, ousou indagar o pontífice no ano passado ao visitar o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. “Bento XVI entende que a experiência religiosa deve dialogar com a razão”, diz o filósofo Luiz Felipe Pondé. E quando fala de tradição, “o papa não está se referindo a um retorno à Idade Média, no sentido de desfazer a separação da Igreja e do Estado”, garante o jornalista americano John Allen, biógrafo de Joseph Ratzinger. “Ele não defende uma versão cristã da sh’aria, a lei islâmica, mas quer que a Europa e o mundo sejam informados de sua herança religiosa e dos valores de suas várias comunidades, em contraste com o secularismo, que nega qualquer papel político para os crentes”, diz Allen.

Bento XVI é um seguidor de Santo Agostinho (354-430), um dos pais da filosofia cristã. Agostinho desdenhava Tertuliano (150-222), o grande pensador cristão da época do Império Romano, para quem a fé era cega (credo quia absurdum, “creio porque é absurdo”). Inspirado nos neoplatônicos, o bispo de Hipona escreveu que era preciso “compreender para crer e crer para compreender”. Nas pegadas de Agostinho, o papa pensa que a razão, sem a angústia religiosa, acaba se transformando em algo risível, banal, niilista”, segundo Pondé. Mas ele também diz que “Deus é logos (razão, em grego), a causa primeira racional de toda a realidade, a razão criativa a partir da qual todo o mundo vem a ser e que se reflete no mundo”. Isso explica por que o embate do Sumo Pontífice católico com o Islã não é fortuito nem casual. É o papel diverso que catolicismo e islamismo atribuem à razão que leva Bento XVI a considerar inócuo um diálogo entre as duas crenças. Já quando era o guardião da fé do Vaticano, o cardeal Joseph Ratzinger desaprovava a extensão do diálogo que João Paulo II promovia com o islamismo. Ratzinger entende a razão como parte integrante na compreensão de Deus e acredita que, para o Islã, Deus está muito além da razão. Segundo o padre Joseph Fessio, ex-aluno de Bento XVI, na visão do Islã, “Deus é tão transcendental que supera todas as categorias humanas, inclusive a racionalidade. Então, para espalhar a religião, pode-se justificar o irracional, a violência e o terror. Não podemos dialogar com eles porque eles não aceitam a razão como base, porque o Deus que eles obedecem está acima da razão”, diz o padre Fessio. “O Islã simplesmente não dispõe da separação entre as esferas religiosa e política de que o cristianismo dispunha desde o princípio. O Alcorão insiste em que toda a ordem da vida seja islâmica. É preciso compreender que o Islã não é um credo que possa ser incluído no reino livre de uma sociedade pluralista”, escreveu o cardeal Ratzinger anos atrás. Dificilmente o papa mudou de opinião.

Por isso, deve se esperar pouco diálogo religioso, pelo menos com os seguidores de Maomé. Muitos acreditam que o pontificado de Bento XVI devotará mais esforço em mudar a Igreja Católica do que em mudar o mundo. Revertendo a tendência de João Paulo II, o Vaticano também não está tão preocupado em melindrar outros credos. Mas alguns analistas católicos ainda esperam um milagre. “Mesmo que ele não queira, Bento XVI é o papa e terá que se debruçar sobre as questões ecumênicas”, disse a ISTOÉ o padre José Oscar Beozzo, historiador, coordenador do Cesesp. “Eu o vejo pessoalmente se engajando nisso, com encontros com os anglicanos, luteranos, ortodoxos russos e gregos. E o papa também irá avançar no mundo muçulmano. Não estava em sua perspectiva, mas ele não tem como escapar disso. Esse será o papa dos acordos doutrinais. Ele irá surprender no ecumenismo”, profetiza Beozzo.
Colaborou Kátia Mello

 

DECIFRANDO BENTO XVI
 
Conheça alguns livros que contam a história do atual
chefe da Igreja e outros escritos pelo próprio papa
  
O Sal da Terra
Joseph Ratzinger era cardeal quando falou, em 1996, sobre os dogmas da Igreja e os anseios populares.
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Bento XVI– O guardião da fé
A biografia revela que o estudante de teologia Ratzinger foi acusado de “perigoso modernista”.
Ed. Record. R$ 39,90
  
A sucessão no Vaticano
O jornalista Wellington Mesquita, locutor da rádio Vaticano, conta os bastidores da sucessão.
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Lembranças da minha vida
Filho de um policial, o papa recorda detalhes da infância e da vida de soldado da 2a Guerra.
Ed. Paulinas. R$ 17,80
  
Bento XVI O alvorecer de
um novo papado

Livro com fotos que avalia os primeiros meses deste papado.
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Um trabalhador navinha do Senhor
Análise das crenças e prioridades do papa, que se anunciou como um simples trabalhador.
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SOFISTICAÇÃO Intelectual, Bento XVI travou um diálogo com o filósofo alemão Jürgen Habermas e até elogiou Karl Marx