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Seja bem-vindo Na chegada, Lula pede o apoio do papa a projetos sociais. E Bento XVI faz crítica indireta ao aborto e à eutanásia

Logo após tomar posse no primeiro mandato, em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu, em reunião no Palácio do Planalto com os representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que seu governo não tomaria nenhuma iniciativa contrária aos “princípios cristãos”. Surpreendentemente, a promessa não durou nem cinco Sextas-Feiras Santas. Em março deste ano, o governo Lula lançou inesperadamente uma “ofensiva laica” jamais vista no País desde a primeira Constituição da República, em 1891, que separou formalmente Igreja e Estado. Temas como a liberação do aborto, pesquisas com células-tronco provenientes de embrião e a união civil de pessoas do mesmo sexo foram colocados agora na agenda do governo.

A decisão do petista de autorizar o debate foi comemorada com festa pela esquerda laica, mas o colocou em rota de colisão com a Igreja Católica, que está na origem do Partido dos Trabalhadores no final dos anos 70. O resultado desse embate é que o presidente Lula conseguiu uma façanha jamais alcançada nem desejada por nenhum governante brasileiro: ele uniu contra si todo o clero do País, desde progressistas, que já vinham criticando o governo pelo seu conservadorismo em matéria econômica, até os tradicionalistas, que sempre tiveram urticária da tal “igreja dos pobres e excluídos” da Teologia da Libertação. “No governo Lula, estão ganhando força os elementos mais radicais, aquela corrente herdeira da esquerda secularista, laica e até anticlerical. Esses setores ficaram frustrados com a política de juros, a reforma agrária e agora estão sendo compensados”, disse dom Filippo Santoro, bispo de Petrópolis (RJ). “Involuntariamente, o governo está ajudando a unificar o mundo católico”, conclui o prelado.

Estadia papal No Mosteiro de São Bento, onde está
hospedado o papa, a romaria de fiéis tornou-se uma constante

A crise ganhou seu momentum com a chegada do papa Bento XVI ao Brasil na quarta-feira 9. Apenas algumas horas antes de o Santo Padre pisar em solo brasileiro, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, jogou lenha na fogueira. “Não se pode querer prescrever dogmas e preceitos de uma determinada religião para o conjunto da sociedade”, alfinetou. Já em seu primeiro discurso, o papa não titubeou: “Sei que a alma deste povo conserva valores radicalmente cristãos que jamais serão cancelados.”

Na verdade, o que vem acionando os alarmes do Vaticano é que essa agenda republicana vem se espalhando em vários países de cultura católica. Ainda no avião que o trouxe ao Brasil, Bento XVI defendeu a proposta dos bispos mexicanos de excomungar os políticos da Cidade do México que há 15 dias garantiram o direito de aborto às mulheres da capital. A polêmica também sacudiu Portugal, Espanha e Itália – países onde recentemente foi aprovada a interrupção da gravidez. Talvez por isso ela tenha esquentado a 45ª reunião da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Itaici, interior de São Paulo. “O presidente precisa ouvir a sociedade”, reclama dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo. “Mas, mesmo se a sociedade fosse majoritariamente a favor do aborto, a Igreja será contra”, completa, mostrando que a opinião pública só é levada em conta quando referenda os pontos de vista da hierarquia católica. Entre os 334 bispos presentes à reunião de Itaici, muitos prelados, que no passado foram mentores ou simpatizantes do PT quando o partido tinha veleidades messiânicas, reagem com o sobressalto republicano de Lula. “Antes de apelar para o aborto, por que o Estado não garante ao nascituro um salário mínimo para garantir-lhe a condição de vida?”, questiona dom Demétrio Valentim, bispo de Jales, interior de São Paulo, ligado à Teologia da Libertação.

humberto franco

O calor dos fiéis Aos gritos de “Bentooo”, o papa saúda 20 mil fiéis reunidos no centro de São Paulo, na quarta-feira 9.
“Esses serão dias cheios de emoções e alegrias”, disse o pontífice

A guerra entre governo e Igreja começou no último dia 8 de março, quando o presidente Lula criticou indiretamente as posições da Igreja ao classificar “hipócritas” as pessoas que criticavam o uso de preservativos, principalmente para a prevenção da Aids. Os bispos vestiram a carapuça e partiram para a ofensiva. “Não se pode apresentar o preservativo como se fosse a solução de todos os problemas. Muitas vezes, ele é apresentado como uma solução para uma sexualidade sem rumo”, critica dom Filippo Santoro, de Petrópolis, RJ. Mas o caldo entornou mesmo quando Lula resolveu falar de improviso sobre o aborto. “Pessoalmente, eu sou contra a interrupção da gravidez. Mas, como chefe de Estado, tenho que tratar o tema como questão de saúde pública”, disse o presidente. “Dou meus pêsames ao governo por permitir que esse assunto esteja em pauta, quando nós temos outros problemas gritantes na saúde. Por que em vez de o governo importar modelos morais ele não se preocupa em globalizar a saúde, a educação e a habitação?”, pergunta dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo de Blumenau (SC). “O Temporão não é o ministro da Saúde, é o ministro da morte”, ataca o prelado, um digno representante dos setores mais “progressistas” da Igreja. No contra-ataque, o ministro Temporão não deixou por menos: “Quem disser que o aborto não é uma questão de saúde pública está delirando, surtou ou tem confusão mental”, desfiou o ministro da Saúde.

montagem sobre fotos de carlos humberto/brainpix – ettore ferrari/efe

Religião e política O papa e o presidente tentam
buscar equilíbrio entre temas sociais e morais

As posições de Temporão não fazem parte de uma estratégia pensada do governo de buscar marcar uma diferenciação entre política e fé, mas o ministro é categórico em afirmar que o Estado e a Igreja se separam há anos. “Há uma diferença entre o respeito à liberdade de credo e as decisões de governo e do Congresso”, diz ele. Na verdade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até preferiria que a visita de Bento XVI não acabasse marcada por essa polêmica. Nem por isso, Lula deu indicações de querer silenciar Temporão. Suas posições estão sendo interpretadas pela cúpula petista como opiniões pessoais de um médico sanitarista, que sabe da gravidade do problema. “As mulheres ricas resolvem a gravidez indesejada de maneira relativamente fácil, enquanto as mulheres pobres morrem”, diz o ministro. Na contabilidade do Ministério da Saúde, no Brasil, em 2006, foram notificadas mais de 150 mortes de mulheres em conseqüência de abortos malfeitos. As ONGs acreditam que o número pode ser multiplicado por cinco, já que, a cada ano, mais de um milhão de mulheres fazem abortos clandestinos.

ricardo stuckert/pr / max g pinto

Fé e razão No encontro, Lula ressalta a importância do “apoio firme e entusiasmado do Vaticano àação global contra a fome e a pobreza”

Os religiosos brasileiros temiam que o sopro “modernista” que varre a Europa católica – defesa do uso de células-tronco para estudos científicos, aprovação da lei de aborto, união civil de pessoas do mesmo sexo – acabasse chegando ao País mais cedo ou mais tarde. Mas o que eles não esperavam é que essa agenda fosse abraçada por um governo que teve suas origens na sacristia. Entre os bispos, paira no ar uma difusa sensação de terem sido “apunhalados pelas costas” por Lula. Mas a frustração com o presidente, pelo menos por parte dos setores “progressistas”, vem se acumulando há muito tempo. Primeiro, foi o descontentamento com a política econômica conservadora e uma reforma agrária acanhada. Depois, veio o mensalão, que praticamente pôs abaixo o trabalho de décadas das pastorais de base. Agora, progressistas e conservadores esquecem as diferenças e partem para o ataque contra a inesperada agenda do governo Lula. “Se o governo realmente levantar a bandeira do aborto, vamos trombar de frente”, prevê dom Angélico Bernardino. Se isso acontecer, Lula poderá passar à história como o presidente que fez valer o preceito constitucional de laicidade do Estado – 106 anos depois de sua aprovação.

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