Todos estão sujeitos a abalos de credibilidade, ensina o jornalista Mário Rosa, especializado em restaurar a reputação de poderosos

Mário Rosa, 37 anos, jornalista pela Universidade de Brasília, começou a vida profissional metido em encrenca. Mais exatamente, como assessor de imprensa do então ministro da Fazenda, Dílson Funaro – o controvertido arquiteto do Cruzado.

Dezessete anos depois, Mário mantém a mística: costuma estar onde a confusão está. Após uma trajetória bastante talentosa em veículos convencionais como Veja e a Rede Globo, Mário se especializou numa espécie de pronto-socorro para vítimas da (má) comunicação. “Administrador de crises”, chamam uns. “Administrador de imagem”, prefere ele, na convicção de que seu trabalho é do tipo que, como sexo, é melhor antes do que depois.

A síndrome de Aquiles ou Como lidar com as crises de imagem (Editora Gente, 247 páginas, R$ 23) é uma reflexão sobre sua experiência no inferno das crises que arrastam consigo o mais precioso patrimônio de uma pessoa pública – sua reputação – ou de uma organização – sua credibilidade.

“Ainda que as crises se dêem em instituições ou em empresas, elas sempre atingem um ser humano”, diz ele. Não por acaso, Mário Rosa já passou por situações constrangedoras como ver figuras imponentes chorando no seu ombro e ruindo à sua frente. Pouco a pouco, ele próprio foi construindo um sistema baseado na fórmula Andy Warhol às avessas. “No mundo da informação instantânea”, resume, “todo mundo tem direito a 15 minutos de fama, mas também a 15 minutos de execração”.

Mário Rosa passou, à sombra, pelo bug do milênio (assessorando o governo federal), pela CPI do Futebol (a CBF como cliente), pela última campanha presidencial argentina (seu candidato, o peronista Eduardo Duhalde, perdeu para Fernando De la Rúa) e cuida ou já cuidou da imagem de corporações como a Rede TV!, HSBC, Caixa Seguros, os Grupos Schahin, Jereissati, Opportunity e um vasto etc.

Se há algum tema que faltou ao livro e sobre o qual Mário Rosa desconversa é quanto ganha um homem dedicado a certas emergências empresariais. Admite apenas que é um bom dinheiro. Amigos dele confidenciam que, em nome de prudência bastante compreensível, Rosa costuma cobrar adiantado. É a prática no mercado onde a pioneira especialização de Mário Rosa já é profissão corriqueira: os Estados Unidos.

O preço pode ser um trabalho excessivo mesmo para quem cultiva a lenda de jamais dormir mais de quatro horas. Quanto ao inequívoco estresse pessoal de situações tão agudas, não há nada que não se resolva com meia dúzia de Cocas light – exatamente o que ele consumiu ao longo desta entrevista.

ISTOÉ

É verdade que você foi procurado pelo Antônio Carlos Magalhães nessa crise do painel do Senado?

Mário Rosa

 É, assim como é verdade que fui procurado antes pelo senador Jader Barbalho, e sempre fui procurado por outros políticos. Mas prefiro não trabalhar com eles. Não se trata de uma questão de incompatibilidade pessoal. É que ajudo as pessoas a superar crises de imagem. Os políticos gostam de criar crises de imagem, não só para seus adversários como para si mesmos. É uma atitude canibalesca, de destruição mútua. Prefiro evitar. Todo mundo tem o direito de defesa. Até os nazistas, em Nurenberg, tiveram. Mas nem tudo é defensável. Não creio que Goering tivesse um assessor de imprensa.

ISTOÉ

De todo modo, se não houvesse Brasília e se não houvesse políticos, o que seria da profissão de um gerenciador de crise?

Mário Rosa

 Brasília dá, sim, grande contribuição ao tema. É o que chamo de síndrome de Aquiles – o título do meu livro. Aquiles era aquele general grego vitorioso, um super ACM, enfim, um vencedor. Perdeu uma única vez, por causa de uma pequena falha – seu calcanhar não era invulnerável. Seu nome passou a ser associado à derrota e à fragilidade. Essa inversão súbita de imagem que atinge em especial as pessoas poderosas é o que chamo de síndrome de Aquiles.

ISTOÉ

Então, seu livro não é para quem está sendo derrotado. É até para quem está vencendo.

Mário Rosa

No caso dos dois senadores em crise, por exemplo, Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda – são homens talentosos. Você pode acusá-los de tudo, menos de serem ingênuos e imaturos. Mostraram seu ponto fraco. É um paradoxo: as pessoas muito poderosas são mais vulneráveis à crise. Às vezes, cometem erros primários que não precisariam ser cometidos. O modelo que os levou ao topo cristaliza certezas, convicções que não funcionam na hora da dificuldade. Isso vale para políticos, empresários, empresas, instituições: preparar-se antes. Na crise, você mal tem tempo de reagir ao turbilhão.

ISTOÉ

Por falar em crise: ACM teria salvação?

Mário Rosa

 Tomei duas decisões ao escrever o livro. Primeira: ressaltar sempre o positivo em vez de acusar o negativo. Segunda: existe um tipo de profissional – e é um perigo que consultores como eu correm – que sai por aí opinando, em teoria, sobre tudo, de maneira geral. Você vira mago – o mago das finanças, o guru da moda, o gênio da computação gráfica… Não há saída mítica para a crise.

ISTOÉ

Como você lida com o stress da crise: o do cliente e o seu próprio?

Mário Rosa

 Preciso dizer que tem alguns clientes que jamais atenderei. Pessoas envolvidas com desfalques financeiros, com prejuízos à coletividade, roubos, corrupção, casos passionais de assassinato, questões de narcotráfico… Essa é a maneira de administrar minha imagem preventivamente, não me associando a esse tipo de crise. Há um outro lado da crise: no mundo moderno, quando se é vencedor, você acaba ferindo muitos interesses. Esses interesses contrariados podem se articular, seja politicamente, seja empresarialmente, e colocar pedras no seu caminho. As crises de imagem não decorrem obrigatoriamente de impostura, má-fé ou erros. Na primeira conversa com o cliente, gosto de apresentar a minha premissa. Digo a ele: o senhor não precisa me dizer a verdade, mas o senhor não pode me falar nenhuma mentira.

ISTOÉ

No fundo, qual é a diferença?

Mário Rosa

 O que quero dizer é que a mentira acaba por ser, daqui a uma semana, um mês, dois meses, desmascarada. Não tenho pretensão de que uma pessoa que me conhece há quinze minutos conte toda a verdade sobre a vida dela. Mas tenho a obrigação de alertá-la que qualquer impostura vai ser a pior decisão que ela pode tomar. Durante uma crise, falar a mentira é um passaporte para uma crise muito maior. Porque, quando a mentira é descoberta, e será descoberta, ela cria um segundo problema e amplifica terrivelmente o primeiro. As mentiras não se somam, elas se multiplicam. Temos milhões de olhos nos observando hoje o tempo inteiro. Falar a verdade num processo de crise é ter em conta o mundo em que vivemos. Na era da informação, deixamos nossas digitais eletrônicas e visuais por onde andemos.

ISTOÉ

A verdade, então, não é uma virtude, é uma estratégia?

Mário Rosa

É quase impossível sustentar uma mentira num processo público de grandes proporções. Se não for por um valor moral, que é o desejável, que seja, sim, uma questão estratégica. A verdade tem de ser uma aliada sua. Veja o caso do presidente Clinton, o homem mais poderoso do mundo – podia apertar um botão e destruir tudo. E não conseguiu enganar a opinião pública. A mentira dele só foi flagrada porque vivemos na era do DNA. Deixou vestígio no vestido da estagiária, dançou. A mentira não só tem pernas curtas, ela deixa rastro. Mentir ofende a inteligência alheia e, mais que isso, é uma opção suicida.

ISTOÉ

 Político não mente o tempo todo?

Mário Rosa

 O que os políticos dizem aos políticos, e como, é problema deles. Cada profissão tem seu jeito de comunicar, seu jargão, sua maneira de negociar. O problema é mentir para a opinião pública. Independentemente de ser feio e antiético, é péssimo negócio.

ISTOÉ

Nessa crise do painel do Senado, alguém mentiu. A opinião pública vai saber quem mentiu?

Mário Rosa

Já se sabe que alguém mentiu. É um caso exemplar: políticos de expressão, homens tarimbados, que tiveram uma vida inteira de vitória, e eis que aparece o calcanhar de Aquiles. Eles superestimaram a possibilidade de sustentar a mentira por um tempo excessivamente longo. Os fatos foram se precipitando e eles tiveram que reconhecer que estavam mentindo. A televisão mostra alguém dizendo alguma coisa e, em seguida, uma nova versão – não há credibilidade que resista a isso. Não é alguém que lhe acusa de ser mentiroso. É você provando, com suas próprias palavras, que mentiu. Não há pior acusador do que você mesmo.

ISTOÉ

Você assessora a CBF ao longo da CPI da Nike. Mas não constrange estar ao lado do atraso? Ou você simplesmente despreza futebol?

Mário Rosa

 A primeira conversa que tive com o presidente da CBF durou cinco horas. Ricardo Teixeira é hoje – e não me cabe aqui defendê-lo; quem o defende são os advogados da CBF – o único dirigente esportivo brasileiro que não recorreu da quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico na CPI. Tive acesso a todas as contas bancárias, telefônicas, fiscais. Fiz todos os cruzamentos de dados. A Comissão Parlamentar de Inquérito, que é presidida por um deputado independente, o deputado Aldo Rebello, do PCdoB, fez o mesmo. Nenhum único desvio no campo da moralidade, de utilização dos recursos da CBF, foi apontado. A única coisa que está provada até agora é que ele tem muitos inimigos. É um homem de destaque, atinge outros interesses, é natural. O que não é natural é uma pessoa roubar.

ISTOÉ

Por que será que Fernando Henrique abortou a CPI da Corrupção? Seguindo os seus critérios, não poderia até ser útil para ele?

Mário Rosa

Volto a citar meu mantra: não posso ser o mago da crise ou guru da imagem. Não vou sair opinando inopinadamente sobre tudo.

ISTOÉ

A mídia está superexcitada com esse clima de escândalos. Você é jornalista e, por outro lado, muitos de seus clientes podem ter sido, digamos, vítimas da imprensa. Você acha que a imprensa exagera?

Mário Rosa

É muito mais fácil culpar a mídia do que fazer uma reflexão sobre o mundo que nos envolve. Na era da informação, vivemos duas dimensões: a nossa vida cotidiana e também, de certo modo, vivemos a vida de quem a mídia expõe publicamente. A morte do Senna ou do Kennedy vira catástrofe para nós. O senador ACM e o senador Jader Barbalho são hoje pessoas mais presentes para qualquer um de nós do que o colega de escritório. Quando um laboratório fabrica pílulas de farinha, as vítimas não são apenas as mulheres que engravidaram involuntariamente. Você também se pergunta: será que o analgésico que dou para meu filho não vai fazer mal a ele? Crise de imagem não são um privilégio, entre aspas, dos poderosos. A espada de Dâmocles, pendendo sobre a nossa cabeça, tem a forma de um minigravador e de uma câmera indiscreta.

ISTOÉ

Crise energética, blecaute, apagão. O que você teria a tirar, nesse caso, de seu livro de receitas?

Mário Rosa

Gerenciar a crise não significa inventar estratagemas para enganar a opinião pública. Há coisas concretas a fazer. A começar por coisas muito simples, mas de alto significado: que o ministro das Minas e Energia, por exemplo, reduza o seu próprio consumo de eletricidade. As crises mexem com a sensibilidade, a emoção. Não é só a verdade que está em discussão. São também os valores e os símbolos.

ISTOÉ

Exemplo de uma crise permanente de imagem: o Lula. Há solução para ele?

Mário Rosa

 O espelho que vai revelar a resposta não é o de um consultor. O país é que tem de dizer. Campanhas eleitorais são crises de imagem com hora para começar e hora para acabar. São imagens superpostas, que determinado dia serão julgadas pelo voto do eleitor. A eficiência das diversas equipes de campanha consiste em identificar os valores adequados à sociedade naquele determinado momento e associá-los ao candidato.

ISTOÉ

Existe um modo brasileiro de crise?

Mário Rosa

 No Brasil, a crise é do Estado ou passa invariavelmente pelo Estado. Quando o procurador Luiz Francisco resolve gravar o senador Antônio Carlos Magalhães, é o Estado acusando o Estado. Quando há uma CPI, é o Estado acusando o Estado. O Estado aqui ainda tem um peso muito maior e os interesses econômicos que gravitam em torno dele, lícitos ou não, fazem com que as fronteiras do poder sejam como uma zona de conflagração permanente.

ISTOÉ

Como isso funciona no caso do apagão?

Mário Rosa

Questiona-se o governo Fernando Henrique. E as empresas privadas de eletricidade? Como elas vêm atuando? Cometeram erros? Cumpriram as metas assumidas? Virou apenas e tão-somente uma crise governamental – esse é o nosso traço. Outra nuance na nossa cultura é a ojeriza pela prevenção. Uma terceira peculiaridade é a estrutura de nosso capitalismo, ainda dominado por empresas familiares de capital fechado. Faça um balanço de recentes escândalos empresariais. Wagner Canhedo não é o administrador profissional da Vasp, é o dono da Vasp. Salvatore Cacciola era o dono do Banco Marka. Há o caso do dono da Encol. O ex-senador Luiz Estevão era o dono do Grupo OK. Ricardo Mansur, o dono da Mesbla e do Mappin. Em empresas familiares com capital fechado, há um modelo, digamos, fechado de decisão. Nos Estados Unidos, a imagem da organização que os executivos profissionais dirigem é um ativo de sua própria imagem. Imaginem o que é trabalhar para a Coca-Cola, a General Motors. Essas marcas têm valor. Se você é um profissional, perder imagem significa reduzir um ativo seu.