Em 1999 e 2000 a Eletrobrás acumulou inutilmente R$ 3 bilhões. Investidos em geração termelétrica, teriam gerado mais de 2 mil megawatts, suficientes para cobrir o déficit de energia no Nordeste. O caixa da Petrobras, empresa participante do projeto de construção de 49 usinas termelétricas, chegou a R$ 13 bilhões no mesmo período – que poderiam ter construído mais que os 8 mil megawatts necessários para evitar o racionamento em todo o País. O dinheiro, que está registrado nos balanços de março das duas empresas, só serviu para maquiar contas do governo federal que, apesar desse sacrifício inútil, viu sua dívida continuar a explodir com a alta do dólar e dos juros.

Em 1998, o orçamento da Eletrobrás foi cortado de R$ 3,2 bilhões para R$ 2,8 bilhões – um terço do que o País precisava. Não importava, a Eletrobrás ia ser privatizada ainda nesse ano. Em 1999 foi reduzido de R$ 3,02 bilhões para R$ 2,3 bilhões – afinal, a empresa seria privatizada. A amputação ajudou a produzir 0,1% de superávit primário. Em 2000, pelo mesmo motivo, qual o problema de cortar novamente o orçamento para R$ 2,1 bilhões? E nada de deixar a Petrobras gerar energia – é preciso esperar o dinheiro privado.

Não foi coisa de amadores. Chegar ao apagão exigiu muito tempo e obstinação. Para o governo FHC, o Estado, mesmo com recursos em caixa, não devia se atrever a gerar energia e tirar oportunidades do investidor privado – quer este estivesse disposto a investir, quer não. Melhor girar o dinheiro das estatais no mercado financeiro para mostrar números mais vistosos ao FMI e a Wall Street.

Décadas perdidas – O risco de déficit cresceu pouco a pouco desde os anos 80. Mas é do atual governo a proeza de ter acelerado o processo e dado o passo decisivo para o abismo. Na década de 80, mesmo com investimentos de R$ 17,5 bilhões anuais a preços de hoje, a capacidade de gerar energia já crescia, em média, algo menos que os 6% ao ano do consumo – ritmo quase três vezes mais rápido que o do PIB. Não que o desempenho econômico da famosa “década perdida” fosse brilhante, mas o aumento dos preços do petróleo e o esforço pelo superávit comercial estimulavam poderosamente a substituição de petróleo por eletricidade.

Nos anos turbulentos de Collor e Itamar Franco, 1990 a 1994, os investimentos caíram drasticamente. O crescimento da capacidade em geração de eletricidade baixou para 2% ao ano. Mas o crescimento econômico foi ainda mais lento, o petróleo voltou a ser barato e assim o aumento médio do consumo foi de apenas 3% ao ano. Sob Collor, foi tocada a hidrelétrica de Xingó, mas à custa da paralisação de quase todo o resto. Sob Itamar Franco, muitas obras paralisadas começaram a ser retomadas, mas o volume dos investimentos continuou a cair.

Modelo furado – A construção de grandes obras de geração leva quatro ou cinco anos quando tudo corre bem, sendo boa parte do investimento absorvida pelas etapas iniciais. Mas, paralisadas ou andando em ritmo muito lento, dezenas de obras do início da década de 80 ainda se arrastavam em 1994. Ao ser implantado o Plano Real, já faltava relativamente pouco para concluir muitas obras importantes de geração. Assim, apesar dos investimentos totais (incluindo privados) continuarem num patamar muito baixo em termos reais, o ritmo do aumento de capacidade de 1994 a 1998 teve uma ligeira retomada, chegando perto de 3% ao ano.

Não bastava. Como se alertava já em 1994, se o Brasil voltasse a crescer, poderia ficar sem energia. O Plano Decenal da Eletrobrás previa investir US$ 6 bilhões por ano até 2004 – quase três vezes mais do que viria a ser realmente investido – para atender a um crescimento anual no consumo de 4,6%. Na realidade, de 1994 a 1998, com investimentos em indústrias eletrointensivas, modernização do comércio e crescimento das vendas a prazo de eletrodomésticos, o consumo cresceu 5% ao ano.

A margem de segurança ia sendo consumida e não faltavam advertências. O governo sempre tinha a resposta pronta: só mercado e iniciativa privada resolvem o problema. Em dezembro de 1995, no programa de rádio Palavra do Presidente, FHC anunciou um programa de 71 usinas privadas, no valor de R$ 37 bilhões, até 2004: “A energia elétrica vai chegar à casa de um número maior de brasileiros e as indústrias vão poder trabalhar sem medo de faltar luz e pagando tarifas mais baratas”, comemorava FHC.

Mas logo o governo percebeu que não bastava traduzir para o português o modelo britânico, e a sua base no Congresso descobriu que a concorrência não garantiria o abastecimento de energia ao Norte, nem preservaria a água dos rios para o Nordeste. Com o futuro do mercado indefinido, os empresários ficaram ariscos – salvo as grandes indústrias eletrointensivas –, tentando se proteger do crescente risco de apagão. O setor privado responde por 60% do reduzido investimento em eletricidade, mas principalmente em distribuição e na continuação de investimentos iniciados pelo Estado.

Em abril de 1997, dois apagões inesperados paralisaram o Sul e o Sudeste por horas. O sistema já estava no limite, mas o alarme foi abafado por mais algum tempo. As chuvas de 1997 e 1998 superaram a média, a indústria transferiu consumo para fora dos horários de pico, foram aceleradas obras de transmissão para dar mais jogo de cintura ao sistema. Aí o governo, sob risco de uma crise cambial e financeira, recorreu ao FMI. O acordo fixou uma meta de superávit primário – sem proibir explicitamente as estatais de tomar empréstimos ou fazer investimentos –, mas serviu de pretexto para essa política.

Nhenhenhém – Em 1999 e 2000, a desvalorização virou a mesa do jogo elétrico. A privatização ficou ainda mais difícil, caíram as tarifas em dólar, subiu em reais a dívida das companhias elétricas, bem como o preço dos equipamentos importados, mas o temor da inflação impediu o governo de dolarizar as tarifas e agradar o investidor internacional, que decidiu engavetar os projetos de termelétricas. Mesmo assim, o governo teimou em proibir a Petrobras de tocá-las sozinha. O modelo havia implodido, mas, na falta de um plano B, o nhenhenhém continuou por mais dois anos, enquanto o investimento em energia elétrica, inclusive privado, caía para o nível mais baixo em décadas. As chuvas foram menos generosas que nos anos anteriores; os reservatórios, ao tentar dar conta da demanda, se esvaziaram a olhos vistos. O governo apostou que em 2001 as chuvas voltariam e ia dar para empurrar com a barriga até a próxima eleição. Não deu.

De alarmistas a iluminados consultores

Liana Melo

A crise energética virou assunto obrigatório em todas as rodas. Difícil é entender o que realmente está acontecendo, diante da enxurrada de informações e notícias. Nessa hiperinflação de dados, um site chama a atenção por sua clareza e didatismo. Feito por técnicos do setor elétrico, fundadores do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico – Ilumina (www.ilumina.org.br), coloca na rede as informações necessárias para, virtualmente, jogar luz sobre o tema. Desde que a crise estourou, cerca de dois mil internautas vêm acessando diariamente o site do Ilumina. A procura é tanta que seus organizadores cogitam mudar o estatuto para permitir que a entidade, uma organização não-governamental, possa prestar consultoria para órgãos públicos e empresas privadas.

“Somos a voz rouca do setor elétrico. Aquela voz que durante anos foi ignorada pelo governo, como se não entendêssemos do assunto”, lembra Roberto Pereira, diretor do site. Ele e mais cerca de 80 técnicos aderiram aos programas de demissão voluntária, quando teve início o programa de privatização do setor, em meados dos anos 90. Sem emprego, começaram a se reunir, e daí para as discussões sobre o setor elétrico foi um pulo. Experts no assunto, começaram a produzir textos, analisar criticamente cada passo do governo, até que nasceu a idéia de abrir um site.

Para atrair o público leigo, a linguagem procura ser didática. Explica, por exemplo, que o risco de racionamento no País não é novo. Começou na época da privatização e para evitá-lo seria necessário investir na geração de energia. “Para atender o aumento de demanda, seria necessário construir uma usina do tamanho de um terço de Itaipu anualmente”, revela o Ilumina.

Não é de hoje que o governo FHC vem sendo alertado sobre o problema. Desde 1994, o físico Luiz Pinguelli Rosa, integrante do Ilumina, e o engenheiro Mauricio Tolmasquim, da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cutucam o Planalto. Toda essa turma foi, mais de uma vez, chamada de alarmista.