A crise de energia do Brasil parece mais grave do que o governo admite. Um estudo feito pelo consultor do governo e de algumas das maiores empresas de energia do mundo – a Eletrobrás, as americanas Enron e AES, a inglesa British Gas, entre outras –, engenheiro José Rosenblatt, sugere que a definição oficial de corte de 20% no abastecimento nas regiões Sudeste e Centro-Oeste a partir deste mês de junho não será suficiente e deverá ser aumentada para 25% para manter o nível mínimo de segurança nos reservatórios das hidrelétricas. Rosenblatt apresentou as suas conclusões em duas reuniões fechadas do banco americano J. P. Morgan, em São Paulo e em Nova York, uma semana depois do anúncio do plano do governo. Em vez de considerar no seu cálculo a mesma previsão dos técnicos governamentais, de que as chuvas atingirão até o final deste ano 75% do volume médio histórico, o consultor acha mais provável chover menos nesse período – 70% da média histórica –, tendo em vista a situação do clima até agora. Dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) mostram que em janeiro de 2001 choveu 72,8% da média histórica e, nos meses seguintes, menos que isso. Em maio, as chuvas atingiram 71% da média (leia o gráfico). No Nordeste, a situação é pior.

Rosenblatt, sócio da empresa de consultoria Mercados de Energia, do Rio de Janeiro, não quis dar uma entrevista formal, mas confirmou os dados do seu estudo. “É uma simulação bastante elementar, feita para apresentação. Mas um estudo mais profundo não vai brincar com isso. O ano começou muito mais perto da média histórica de 70% e aparentemente continua assim em maio. Também pode acontecer de melhorar, mas, se continuar como tem sido até agora, esse é o prognóstico”, explica o engenheiro.

Essa análise não é uma exceção entre especialistas em energia. “Há um pouco de otimismo sim, na visão do governo. Trabalho com uma hipótese de corte maior do que 20%. Junho será o mês de implantação do racionamento; no começo de julho, o governo saberá com exatidão a redução do consumo obtida; em agosto, o mês mais seco do ano, ainda que a população consiga reduzir em 20% o seu consumo, a falta de chuvas poderá fazer o governo elevar o corte para até 30% ou fazer o apagão”, prevê Marcos Severine, respeitado analista do banco Sudameris, especializado em energia.

A região Norte, que fornece energia para o Sudeste e o Nordeste e até agora não foi mencionada pelo governo, “muito provavelmente” será incluída no racionamento, talvez em agosto, devido à tendência da armazenagem das represas cair rapidamente durante a estação de seca, prevê Rosenblatt em seu estudo. A ONS admitiu a possibilidade de aumentar o corte no Nordeste e de estender o racionamento para a região Sul, também abastecedora da região Sudeste. Juntas, as regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste consomem 79% da energia do País. A atitude mais prudente, explicou Rosenblatt na apresentação ao J. P. Morgan, seria considerar a probabilidade de chover 65% da média histórica no Sudeste e Centro-Oeste, de janeiro a novembro, e isso exigiria um corte de 30% no suprimento de energia nas três regiões, para evitar um colapso.

O fator político – Caso a análise do consultor seja mais fiel à realidade do que o quadro divulgado pelas autoridades, entende-se melhor a confusão do governo em relação às medidas para enfrentar a crise. Em duas semanas, o presidente Fernando Henrique Cardoso editou e revogou em parte a medida provisória que restringe o direito constitucional de recorrer à Justiça contra o racionamento; o ministro do Planejamento Alcides Tápias anunciou e o governo desmentiu a iminente decretação do estado de emergência no País – estado de defesa, de acordo com a Constituição – para enfrentar a crise de energia e o ministro do apagão, Pedro Parente, sugeriu um feriado nacional permanente às segundas-feiras para economizar eletricidade. O detalhe importante é que isso tudo aconteceu antes do início do racionamento. Fica a impressão de que o Executivo reluta em mostrar por inteiro a realidade do setor energético.

Uma outra causa das trapalhadas seria a perspectiva das eleições presidenciais em 2001. Os objetivos de armazenagem de água até o final de 2001 provavelmente são muito baixos, a probabilidade de racionamento em 2002 é elevada e o “risco político” é suspender o racionamento no final de 2001 e retomá-lo em abril ou maio do ano eleitoral de 2002, calcula Rosenblatt. Severine prevê passos diferentes. Na tentativa de reduzir os estragos políticos da crise de energia, o governo prorrogaria o racionamento de dezembro deste ano até março de 2002 para garantir um volume extra de água nas represas e com isso possibilitar a suspensão dos cortes no ano em que os eleitores brasileiros escolherão entre o candidato de Fernando Henrique e outros pretendentes. Qualquer que seja a opção escolhida, a crise de energia pode aumentar as chances dos candidatos de oposição a Fernando Henrique em 2002, observa o Banco Bear Sterns, em relatório intitulado Seca Brasileira, que menciona também os danos à imagem do presidente e a erosão da base partidária do governo. A ligação entre o desastre energético e 2002 é mais profunda do que se imagina. As eleições presidenciais terão um papel decisivo na redefinição do modelo energético, rumo a uma forte intervenção governamental no setor por meio da Eletrobrás e da Petrobras ou no sentido da renovação do compromisso com o investimento privado e correção dos defeitos do modelo atual, previne Rosenblatt.

Imponderável – A ansiedade do planejamento político de 2002 em meio à crise de energia estaria na raiz da demora e da relutância do governo em definir e aplicar medidas proporcionais ao tamanho do problema. Um racionamento similar ao atual foi adotado no Nordeste entre 1987 e 1988, com aumento de 200% nas tarifas domésticas e de 400% nas da indústria. O objetivo era a redução do consumo em 13,5%, mas a economia obtida foi de 10,5%. Caso não se atinja a economia de 20% pretendida com o racionamento, os apagões seriam inevitáveis.

O cenário elaborado por Severine prevê apagões em bairros alternados, com duração de quatro horas no período de maior consumo (das 19 às 21 horas), três dias por semana, intercalados com interrupções fora desse horário nos demais dias.

O ministro do Apagão, Pedro Parente, acha que diante do aumento da intensidade das chuvas nos últimos dias de maio, o pressuposto do plano do governo, de 75% da média histórica de chuvas, “é uma hipótese realista”. A população reduziu o consumo espontaneamente em 12% na última semana nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e com isso o nível dos reservatórios ficou dentro da meta de 30% da capacidade. Se a melhora das chuvas se confirmar e o objetivo de redução de 20% no consumo também, o risco de apagões nas regiões Sudeste e Centro-Oeste estará afastado, afirma Parente. “Os sinais são promissores”, disse ele. Os números comemorados pelo ministro do Apagão mostram que a situação está muito mais próxima de chuvas de 70% da média histórica – e, portanto, de uma necessidade de cortar 25% a 30% do suprimento, nos cálculos dos consultores – do que do plano do governo, a quem resta, agora, contar com o imponderável.

Colaborou Sonia Filgueiras

Quem fica com a sobretaxa?

Adriana Souza e Silva

O “tarifaço” criado para quem consome mais de 200 kWh/mês (50%) ou está numa faixa superior a 500 kWh/mês (200%) vai gerar um caixa maior que o gasto do governo com o bônus prometido a quem fizer economia. Pelo menos se todos cumprirem a meta de reduzir exatos 20% de energia. A conta foi feita pelo coordenador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo, Ildo Sauer, que considerou o consumo nas regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Nessa hipótese, só com a sobretaxa, num período de seis meses, as distribuidoras receberiam a mais R$ 1,3 bilhão, contra o valor de R$ 400 milhões a ser pago como bônus aos consumidores de baixa renda (menos de 100 kWh/mês). “Pode ser uma previsão inútil, pois acredito que a Justiça vá derrubar a sobretaxa”, afirma Sauer.

Mesmo hipotético, o dinheiro excedente vindo com o “tarifaço” já desperta sugestões sobre como deve ser aplicado. O Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo acha que deveria haver um fundo nacional de energia, gerenciado pelos setores público e privado, para financiar a geração, transmissão ou distribuição de energia. Para a Câmara de Gestão da Crise de Energia, o ganho poderia ir para as distribuidoras, que usariam a verba na amotização de futuros reajustes de suas tarifas.