Durante o período de campanha presidencial George W. Bush vendeu ao eleitorado americano a idéia de “conservadorismo e compaixão”. O republicano se autodenominava um “direitista gentil”. Ninguém entendeu corretamente o que seria este híbrido. Foi preciso que um discreto senador de seu partido encarnasse este conceito para que o país finalmente tivesse um exemplo concreto de um conservador com coração. James (Jim) Jeffords, em terceiro mandato como representante do Estado de Vermont, discordando da plataforma linha-dura abraçada pelo presidente e seu partido, quebrou sua filiação republicana e, sozinho, mudou o equilíbrio da balança do poder em Washington. Ao tornar-se independente, Jeffords mudou a aritmética básica do Senado, que estava dividido com 50 republicanos e o mesmo número de democratas, sendo que o vice-presidente Dick Cheney tinha o voto de Minerva em casos de empate nas votações. A defecção possibilitou que o Partido Democrata voltasse a dominar a casa, com a liderança indo parar nas mãos do senador Tom Daschle. Lucraram também as lideranças dos poderosos comitês legislativos que controlam as agendas dos diversos setores do governo dos Estados Unidos. Deste modo, um único homem modificou não apenas o futuro da política doméstica do país, mas também alterou os rumos do mundo.

O filme em cartaz em Washington até então obedecia o roteiro dos bangue-bangues de John Wayne. O que se assiste agora está mais para o melodrama à la Frank Capra, com James Stewart como protagonista de uma história evocativa dos bons princípios democratas. Jim Jeffords, aos 67 anos, se assemelha a um personagem de Capra. Moderado, o senador de Vermont vem há anos sendo hostilizado pelos direitistas que tomaram de assalto o partido. Afinal, Jeffords mantém fidelidade a princípios com tonalidades liberais, como o direito ao aborto, igualdades legais a homossexuais e incentivos a programas sociais do governo. A sucessão de golpes ultraconservadores da plataforma da nova Casa Branca foi demais para a tolerância do senador: confrontos com os rivais Rússia e China, alienação dos parceiros internacionais e quebra de acordos, como o Protocolo de Kioto. A gota d’água foi o corte de verbas prometidas para a merenda escolar, um assunto querido a Jeffords.

Os democratas namoram Jeffords há anos, mas não conseguiram fazer com que o senador assinasse o registro partidário. Ele optou por filiação independente, o que não garante seu voto em todas as propostas democratas. Pouco importa: a defecção assegurou ao Partido Democrata os 50 assentos no Senado que ganharam nas urnas, contra apenas 49 dos republicanos. Tirou-se com isto o poder do vice-presidente de decidir impasses nas votações. Esta contabilidade também devolveu aos democratas o comando das 15 comissões do Senado, perdidas desde 1994. “Bush não poderá mais governar unilateralmente, como vinha fazendo”, disse a ISTOÉ o senador Charles Schumer, de Nova York. “São as comissões do Senado que vão decidir as prioridades nas votações legislativas, e os projetos da Casa Branca não terão o mesmo peso desmedido como vinha acontecendo”, diz Schumer. Ficará mais difícil também a aprovação dos nomeados pelo presidente para cargos no Poder Judiciário e nas secretarias e ministérios. Jeffords já havia se arrepiado quando Bush indicou o hiperconservador John Ascroft para o cargo equivalente a ministro da Justiça, um dos motivos que levou sua saída do partido. “O presidente tem presenteado a extrema-direita do partido com indicações de postos. O problema se agrava quando ele nomeia direitistas para postos de juízes federais. Imagine o que ele está reservando para quando abrir uma vaga na Corte Suprema”, disse Schumer.

O desequilíbrio de forças criado por Jeffords arrancou o senador Jesse Helms do comando da poderosa Comissão de Relações Exteriores. O secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, deve estar comemorando porque, desde 1994, Helms, inimigo confesso da ONU, dificultava a liberação das verbas devidas à instituição. Agora será a vez de os democratas darem o troco. A Comissão de Relações Exteriores ainda não tinha nome definitivo para sua presidência, mas o senador Joseph Biden, um liberal de carteirinha, era o mais cotado para o cargo. Não importa o escolhido para substituir Helms: pelo menos uma vítima já está na alça de mira dos democratas. Otto Reich, indicado para o importante cargo de chefe do setor latino-americano do Departamento de Estado, não deve mais fechar sua residência em Miami, pois sua ida a Washington ficou bem improvável. Reich é um cubano radicado nos EUA e figura de porte entre os radicais de direita da comunidade exilada na Flórida. Sua escolha para o cargo é vista como recompensa pelos esforços dos cubanos durante as disputas das eleições presidenciais no Estado. Somente esta percepção já seria suficiente para agredir as sensibilidades democratas, mas o curriculum vitae de Reich também não ajuda. Ele foi o responsável pela campanha de propaganda doméstica contra o governo sandinista da Nicarágua durante a Presidência de Ronald Reagan. Suas manobras em favor dos contra nicaraguenses são lamentadas pelos liberais.

Por tudo isso, Otto Reich é visto com desconfiança ou antagonismo por vários países da região que lhe seria designada. Fontes do Itamaraty asseguraram a ISTOÉ que o nome de Reich criou consternação no governo brasileiro. O mesmo ocorre em maior ou menor grau na Argentina, no Uruguai, Chile, e, principalmente, na Venezuela do presidente Hugo Chavez, amigo do peito de Fidel Castro. De Caracas também sai o próximo embaixador americano no Brasil. Donna Hrinak, que já serviu no consulado em São Paulo, fala português, é diplomata de carreira altamente conceituada. “A indicação de Hrinak é bem-vinda em Brasília. Ela não é uma linha-dura da diplomacia cowboy, nem uma figura saída dos meios empresariais e que ganhou o cargo por causa de suas contribuições de campanha. É uma profissional”, elogia a fonte do Itamaraty. Em sua biografia consta também a premiação, em 1985, pela revista Glamour como “Mulher Trabalhadora de Destaque”. “A confirmação de Hrinak já está decidida”, disse o senador Schumer.

As mudanças nas comissões do Senado também devem bombardear outros projetos de Bush. “A questão da Alca enfrentará oposição ainda mais formidável”, diz Schumer. O senador democrata Ernest Holligans, da Carolina do Sul, será o novo comandante da Comissão de Comércio. Ele é avesso à idéia da Alca e responde a constituintes da indústria têxtil de seu Estado que não querem saber de produtos estrangeiros competindo em seu mercado.

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Guerra nas Estrelas – O famigerado sistema de defesa antimísseis, chamado de Guerra nas Estrelas, já está sob fogo cerrado. Os democratas acham que o projeto é delirante e são contra a renúncia ao tratado antimísseis de 1972. Apontam que o sistema colocará em risco as relações com a Rússia e a China. Os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) também manifestaram na terça-feira 29 suas reservas ao escudo anti-mísseis. Em Bruxelas, o secretário de Estado, Collin Powel, teve uma amostra da oposição que a idéia de Guerra nas Estrelas enfrentará nos países europeus. Para complicar ainda mais a equação, o futuro chefe da Comissão de Forças Armadas do Congresso, o democrata Carl Levin, é um conhecido antagonista do escudo protetor de mísseis.

Os ataques aos planos de governo de Bush partem de todos os lados. A Casa Branca terá de rever sua conduta com relação ao meio ambiente, suas ambições de política energética, com prospeção de petróleo no Alasca, além das investidas conservadoras ao Poder Judiciário e toda a gama de abertura para a direita que tem norteado os movimentos do governo. A equação delicada no Senado pode sofrer outro revertério, com o senador republicano Robert Torricelli, de Nova Jersey, ameaçado de perder o cargo num processo de impeachment por corrupção. Se ele cair, o governador republicano do Estado deverá indicar um substituto e com certeza escolherá um nome de seu partido, voltando a dar 50 assentos aos republicanos. Mas este é um processo que pode demorar e nem mesmo o senador republicano Strom Thurmond, 92 anos, o mais velho senador da história americana – pode viver para sempre. Se ele morrer, sua vaga será aberta e o governador democrata de seu Estado, a Carolina do Sul, poderá indicar um democrata, alterando as forças do Senado.


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