Pouco mais de 24 horas depois de ser forçado a renunciar para fugir da cassação por quebra de decoro parlamentar, o ex-senador Antônio Carlos Magalhães voltou a Salvador e serviu uma das comidas mais detestáveis para o exigente paladar de um bom baiano: acarajé requentado. Na quinta-feira 31 de maio, no Largo do Pelourinho, a cozinha carlista, sob a gerência da agência de propaganda Propeg, da família Magalhães, preparou um showmício cujo principal ingrediente é conhecido desde que ACM começou a fazer política há 47 anos: o uso de dinheiro público para mostrar apoio popular. Juntou um bando de prefeitos do interior, orientados a fretar centenas de ônibus, salpicou um punhado de deputados e vereadores só conhecidos na sua paróquia, distribuiu bandeiras, faixas e camisetas de apoio e enfeitou tudo com o estardalhaço de quem controla rádios e tevês no Estado. Por fim, adicionou um discurso com juras de amor ao povo, xingamentos ao governo federal, promessas e, no final, o lançamento de sua candidatura a um cargo público, desses que garantem imunidade. Todo esse tempero para tentar desfazer a impressão geral de que novos aromas andam rondando a Bahia. Preparada com o esmero de um quitute especial e planejada com a força de quem controla o governo do Estado, a prefeitura de Salvador e mais 390 dos 417 municípios baianos, a manifestação que marcou o retorno de Antônio Carlos Magalhães à Bahia pode, ao contrário, causar uma indigestão. O Ministério Público já está investigando a gastança do Pelourinho.

O objetivo era garantir a presença de 50 mil pessoas no comício para saudar ACM, mas eles só arrebanharam 15 mil. Cada político aliado teve de cumprir uma cota fixada pelo vice-governador Otto Alencar. Prefeitos da região metropolitana de Salvador tinham de levar pelo menos 20 ônibus lotados. Para vereadores da capital esta cota era de, no mínimo, 200 pessoas. Cada prefeito do interior teve que garantir três ônibus cheios e mais 100 pessoas. No município de Milagres, Raimundo Silva, do PFL, trabalhou dobrado. Garantiu a cota doméstica e cedeu ônibus da sua empresa RS Silva para o colega José Ronaldo de Carvalho, da vizinha Feira de Santana. Em Candeias, um dos redutos carlistas, Tonha Magalhães fretou 35 ônibus, uniformizou todos os “manifestantes” de azul e mandou imprimir centenas de bandeirinhas com a inscrição “A Bahia vai corrigir essa injustiça”. O prefeito Benjamim Gabriel dos Santos, da paupérrima Contendas do Cincorá, 7 mil habitantes, levou 20 pessoas para a capital. “Acho que deu para impressionar”, orgulhou-se. Em Irajuba, cidade onde circulam apenas seis ônibus, o prefeito tirou o transporte escolar das crianças para garantir sua parte no comício. “É por uma boa causa”, explicava Cisenando Ribeiro Silva, 33 anos, um dos 51 funcionários municipais escolhidos para ir a Salvador aplaudir ACM. Todas as despesas foram custeadas pela prefeitura do carlista Betão Franco. Vestidos com camisas amarelas da última campanha municipal, eles receberam um kit-comício com camiseta, corneta e marmita. Com tantas torcidas organizadas, pagas pelos cofres públicos, o comício de ACM se transformou num mar de faixas, cada uma lembrando ao ex-senador que seus aliados estavam lá.

A máquina – Valeu tudo. Muitas escolas públicas interromperam as aulas para engrossar a manifestação carlista. Um colégio estadual com o nome do ex-senador liberou os alunos pela manhã com a desculpa de que haveria reunião de professores. A direção da estatal Ebal, Empresa Baiana de Alimentos, uma espécie de supermercado oficial que vende comida com preço subsidiado, encerrou o expediente mais cedo e ainda distribuiu camisetas com inscrições de solidariedade a ACM. A Rádio Educadora, emissora pública do Estado, que por lei deveria ficar longe dessas farras, veiculou durante toda quinta-feira três jingles de campanha feitos especialmente para a ocasião. Depois de assistir em Brasília à posse do filho Júnior, seu suplente, ACM chegou a Salvador no final da tarde e participou de uma carreata de 30 quilômetros entre o aeroporto e o Pelourinho. No comício preparado para sua volta, o velho coronel, que em setembro faz 74 anos, decepcionou. Além das autoridades óbvias, como o governador Cézar Borges e o prefeito de Salvador, Antônio Imbasahy, o ex-senador estava mal acompanhado. Apareceram no palanque, entre outros, seu ex-assessor Rubens Gallerani, investigado por corrupção passiva e enriquecimento ilícito, e o deputado federal Pedro Irujo, apelidado pelo próprio ACM de “basco ladrão”. Também estava por lá o deputado estadual Pedro Alcântara, líder do governo na Assembléia, investigado no ano passado pela CPI do narcotráfico e suspeito de envolvimento em roubo de carga. Num discurso pífio, confirmou sua candidatura ao Senado para tentar recuperar o mandato, mas só conseguiu produzir frases feitas, como “aqui é o meu lugar” e “daqui ninguém me tira“, além de xingar de “malandros”, “ratazanas” e “safados” seus ex-colegas de Parlamento. No final, fingiu tocar trombone e quase caiu ao descer do palanque pelo lado errado, desabando seu corpanzil sobre algumas pessoas que estavam próximas.

A disposição – Na mesma tarde em que ACM voltou a Salvador, a oposição baiana reuniu cerca de 10 mil pessoas numa passeata em outra parte do centro velho da cidade, misturando sindicalistas da CUT, militantes do Movimento Negro Unificado, estudantes secundaristas e universitários, parlamentares do PT, PC do B, PSB, membros do PSTU e até dirigentes estaduais do PSDB e PMDB. Em três semanas, os oposicionistas reuniram mais de 30 mil pessoas em cinco manifestações. Mesmo depois da renúncia de ACM, a oposição não está satisfeita. Quer a continuidade do julgamento e a cassação do ex-senador para impedir que ele se candidate novamente no próximo ano. Até um sargento da ativa da PM apareceu para protestar. Com 21 anos de carreira, 18 como sargento, Isidoro Santana pedia melhores condições de vida para os colegas que, segundo ele, passam fome e vivem fazendo “bicos”.

Com um trio-elétrico que servia de palanque, os oposicionistas acusavam o ex-senador Antônio Carlos Magalhães de “fujão “e “covarde” por não ter aguardado o julgamento pelo plenário do Senado por quebra de decoro parlamentar. “A renúncia é a saída pela porta vergonhosa da fraude e da impunidade a que ACM se habituou a vida inteira. A opinião pública nacional tem que impedir esta complacência com o coronel e o coronelismo”, protestou o ex-governador e deputado federal petista Waldir Pires. O parágrafo 4º do artigo 55 da Constituição Federal diz que a renúncia do parlamentar submetido a investigação que pode acarretar perda de mandato não interrompe seu julgamento, que deve ir até o final. “O povo baiano é quem me julgará”, afirma ACM. A depender do crescimento das manifestações oposicionistas, o velho cacique, se escapar da Justiça, pode acabar tendo surpresas nas urnas.

“Quem manda na Bahia é o povo”

Ricardo Miranda, de Salvador

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Mesmo com a fitinha roxa do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, o procurador Luiz Francisco de Souza não tinha o jeito de turista. Limitou-se a uma olhadela no mar pela janela do táxi e a um acarajé bem temperado, preparado por uma baiana que não entendeu por que aquele homem magro, que não tirava o paletó, era seguido de perto por dois agentes da Polícia Federal. Luiz Francisco, que foi o estopim do processo de cassação de ACM, permaneceu apenas 15 horas em Salvador, na véspera da renúncia. Foi saudado por populares no aeroporto e aclamado como convidado de honra de uma audiência pública da OAB, que teve como tema a impunidade.

ISTOÉ – O sr. veio à Bahia num momento de comoção e com ACM renunciando.
Luiz Francisco de Souza – Vim a convite para mostrar que a Bahia não é governada por um rei, mas a terra do meu pai, de milhões de proletários, negros e oprimidos. Quem manda de fato na Bahia não é Antônio Carlos, mas o povo.

ISTOÉ – A renúncia de ACM não é uma forma de impunidade?
Luiz Francisco – O certo deveria ser cassação. Mas o fato de ele perder o mandato é, de qualquer forma, positivo porque mostra a vitória de um movimento pelo direito, pela cidadania e pela ética. Mas espero que a população da Bahia faça um levante contra esse estado de coisas, vá às ruas, como têm feito os cara-pintadas, a favor da sua cidadania. Eles precisam dominar as ruas e as consciências e virar essa triste página da História da Bahia e do Brasil.

 

Malvadeza roda a baiana

Ricardo Miranda, de Salvador

No domingo 27 de maio, às 12h50, ACM desceu até a portaria do edifício Stella Maris, 383, onde mora, para receber o apoio de uma claque de 20 simpatizantes. ACM, que andava Ternura até perceber que sua renúncia era inevitável, mostrou então o Toninho Malvadeza que nunca deixou de ser. Assim que viu o repórter fotográfico de ISTOÉ, Ricardo Stuckert, ele se descontrolou. Partiu para cima de Stuckert e o ameaçou, dedo em riste, agarrando com força seu braço esquerdo, com o qual ele protegia a câmera fotográfica. “Seu filho da puta. Já não te falei pra você não me fotografar mais?”, esbravejou ACM, transtornado, expulsando-o dali. Stuckert não aceitou a provocação. Manteve-se tranquilo diante da agressão, registrou o que pôde e saiu.

Antes, na sexta-feira 25, depois de almoçar com sua tropa de choque, ACM cumprimentou os fotógrafos que o esperavam com uma amostra de sua boa educação. “Vão se fuder”, disse, rindo do próprio destempero. A agressão a Stuckert provocou protestos da Associação Baiana de Imprensa. “É inadmissível que um ato incivilizado como esse volte a ser praticado por ACM”, reagiu Samuel Celestino, presidente da ABI, lembrando casos como o do repórter da TV Itapoã, Antônio Carlos Correa Fraga, que em 1986 foi agredido com um tapa na cara, empurrões e pontapés. O mau exemplo de ACM, dono de boa parte da mídia local, ilustra como a cobertura política na Bahia tem sido de alto risco. Nos últimos dez anos, dez jornalistas foram assassinados. Todos os crimes permanecem impunes.


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