Primeira lição nos bancos escolares das faculdades de jornalismo: nunca se começa uma notícia pela negativa. Se “não aconteceu” alguma coisa, então não temos notícia alguma. Mas toda regra tem exceção. Na quarta-feira 30, a âncora do Jornal da Globo, Ana Paula Padrão, abriu o telejornal com a seguinte frase: “Não aconteceu nada. O discurso poderia ter se resumido às últimas palavras – renuncio ao mandato.” Foi uma boa tradução do tão esperado pronunciamento de renúncia de Antônio Carlos Peixoto Magalhães (PFL-BA), ocorrido naquela tarde no plenário do Senado. Mais uma vez, tudo não passou de um blefe. O coronel baiano engabelou o País com promessas de revelações bombásticas e, como sempre, na hora H apresenta dossiês malfeitos e faz discursos pífios e ressentidos. Pela expectativa criada, pode se concluir que a montanha pariu um rato, como diria um certo líder petista.

Foi patético ao tentar exibir uma falsa grandeza e parecia falar diante do espelho ao apontar defeitos do presidente Fernando Henrique Cardoso. No maior cinismo, tentou transformar a saída pela porta dos fundos do Senado num gesto de altivez. “A renúncia de ACM não tem motivo nobre, é mera fuga para escapar da cassação, como os anões do Orçamento”, comparou o senador Roberto Freire (PPS-PE). Num contraponto à autobiografia falseada em que Antônio Carlos se descreveu como democrata e paladino da moralidade, o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) historiou a verdadeira trajetória política do cacique baiano desde a década de 50 e as inúmeras facadas pelas costas em aliados: “Chantagem, traição e mentira são três características da personalidade de Antônio Carlos”, sentenciou Antero.

Um dia depois da melancólica renúncia, ACM já se preparava para esfaquear outro ex-aliado. Na quinta-feira 31, ele insinuou que houve envolvimento do líder do bloco das oposições, José Eduardo Dutra, no escândalo da violação do painel eletrônico do Senado. “Tivemos um diálogo que um dia irei esclarecer”, ameaçou. O ex-senador José Roberto Arruda – parceiro de ACM na empreitada criminosa no Senado e na fuga pela renúncia – contou ao presidente do Congresso, Jader Barbalho (PMDB-PA), e ao do PFL, Jorge Bornhausen (SC), sua versão para o “diálogo” do baiano com o colega petista.

Mentiras e fofocas – De acordo com a história de Arruda, antes de sua entrada em cena Antônio Carlos já havia combinado com Dutra a extração da lista com os votos a favor e contra a cassação de Luiz Estevão. “Esses dois mentiram tanto que não dá para acreditar em mais nada que parta deles”, ataca o deputado Aloísio Mercadante (PT-SP). Na mesma hora em que ACM falava do “diálogo”, Dutra pedia a Barbalho para assistir ao discurso que pronunciou diante de um plenário vazio. “Desde ontem, observamos a construção da tese de que o PT não teria interesse em estabelecer uma investigação na CPI da Corrupção, porque teria medo de ser envolvido em um rescaldo do processo do painel. Isso foi dito claramente por um dos atores principais desse episódio (Arruda) e está sendo divulgado por meio das famosas declarações em off (sem identificação do informante). Ou pelas fofocas plantadas na imprensa”, disse Dutra. O curioso é que, depois de afirmar que uma coisa nada tem a ver com a outra, ele fez uma declaração da tribuna que foi entendida pelas cúpulas do PFL e do PMDB como uma desistência da luta pela criação da CPI: “Não vamos continuar fazendo o papel de babá de senadores, adulando-os para assinarem. Não. Todos somos adultos e sabemos das nossas responsabilidades.”

A mágoa do cacique baiano e do cúmplice Arruda com Dutra é que, na reta final da apuração no Conselho de Ética, o petista acabou reforçando o bloco que cobrou a cassação dos mandatos da dupla de fraudadores. Diferente foi o comportamento de José Eduardo Dutra no começo das investigações. “A montanha pariu um rato”, chegou a dizer o petista quando o perito Ricardo Molina apresentou à Comissão de Fiscalização do Senado a transcrição parcial da gravação de uma fita, antes inaudível, da conversa de ACM com três procuradores da República. Com esta frase, o senador pretendia desqualificar ISTOÉ, responsável pelas revelações que levaram à renúncia de ACM. Apesar de truncada, ela deixava claro que Antônio Carlos dizia saber a posição dos colegas e revelava o voto da senadora Heloísa Helena (PT-AL). Exatamente como havia publicado ISTOÉ depois da audição de duas fitas com gravação de boa qualidade. A revista também revelou que Dutra sabia desde a véspera da sessão que cassou Estevão que o painel poderia ser violado. Ele se esquivou de confirmar ou desmentir a reportagem durante três semanas. Depois do laudo da Universidade de Campinas comprovando a violação do painel e da enxurrada de confissões puxadas por funcionários do Serviço de Processamento de Dados do Senado, Dutra finalmente confirmou a informação divulgada por ISTOÉ em depoimento ao Conselho de Ética. O PFL decide nos próximos dias se pede ao Conselho uma investigação sobre Dutra.

Medo da cassação – Ao tentar colocar Dutra em saia-justa, o ex-senador baiano exercita um de seus jogos prediletos – fazer insinuações para acuar desafetos. Mas com a mesma cara limpa que acusa, quando seus interesses estão em causa, ele recua. Foi com espanto que o plenário do Senado assistiu a ACM dirigir-se a Jader Barbalho ao falar das denúncias sobre o bilionário rombo na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Falo, certo de que estou colaborando com Vossa Excelência para que, amanhã, o verdadeiro responsável que permitiu tudo isso não venha, direta ou indiretamente, voltar a incriminá-lo.” Essa surpreendente brandura com Jader não se deve apenas às tentativas do presidente do Senado de evitar a degola antes que o Conselho de Ética aprovasse o relatório propondo a dupla cassação de mandato. Tem outro bom motivo. Vai chegar às mãos de Jader um recurso de parlamentares da oposição pedindo o prosseguimento da tramitação da proposta de cassação de ACM e Arruda, com a argumentação jurídica de que a renúncia não paralisa o processo.

Mas não foi só com Jader que ACM afinou. Usou e abusou de adjetivos contra Fernando Henrique, mas, ao contrário da expectativa que criou, nem sequer tocou em questões espinhosas para o governo, como o caso do ex-ministro Eduardo Jorge Caldas Pereira e o escândalo do socorro aos bancos Marka e FonteCindam. O PFL espalhou a versão de que Antônio Carlos esfriou a pedido do partido. Não foi bem assim. Com a popularidade em vertiginosa queda na Bahia, o coronel baiano precisa de cargos e verbas federais para tentar evitar um estouro da boiada no carlismo. Mas o comportamento oportunista não está dando certo. No Palácio da Alvorada, de onde assistiu à fala de ACM pela tevê, o presidente falou cobras e lagartos do ex-senador. Na manhã de quinta-feira 31, em conversa no Palácio do Planalto com os líderes do PMDB, Renan Calheiros (AL), no Senado, e Geddel Vieira Lima (BA), na Câmara, FHC voltou a manifestar irritação com o discurso. Concordou que, a partir de agora, as benesses federais vão chegar à Bahia pelas mãos do PSDB e do PMDB. Está convocando as bancadas dos dois partidos para o anúncio, na quarta-feira 6, de medidas para enfrentar a crise do cacau na Bahia, com forte impacto eleitoral. Fernando Henrique ameaçou também atropelar o governo baiano se ele continuar a fazer retaliações contra prefeituras administradas pelas oposições. “O ACM não é mais interlocutor. O presidente vai fortalecer quem está do lado dele, que somos nós”, comemorou Geddel.

Fuga das urnas – Ainda assim, o senador Paulo Souto (PFL-BA) – que tem vôo próprio e mostrou um comportamento discreto durante as investigações pelo Conselho de Ética – continuará a ser bem tratado. Hoje ele é o político mais popular da Bahia e as oposições ainda não perderam a esperança de que acabe rompendo com Antônio Carlos. Se isso acontecer, será o fim do carlismo. ACM está anunciando que vai concorrer ao Senado não por apreço a Souto, a quem impediu a reeleição em 1998, mas porque teme ser derrotado se for candidato ao Palácio Ondina. Por outro lado, se entregar a Souto a candidatura ao governo, estará passando, em vida, seu espólio político a quem não quer como herdeiro. Na vaga aberta com a fuga de Antônio Carlos do Senado, assumiu o mandato o apagado ACM Júnior, o filho empresário que não tem talento nem gosto por política. Enquanto Júnior tomava posse na manhã de quinta-feira 31, do lado de fora do Congresso estudantes promoviam uma manifestação contra o cacique baiano e a favor da CPI da Corrupção. Chamou atenção no protesto o comportamento da presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), Carla Santos, que tirou a roupa para cobrar transparência do governo FHC. “A única coisa que me envergonha é ver tanta corrupção e um presidente que continua impune. Tirei a roupa por uma causa que acredito e disso me orgulho”, justificou Carla, uma gaúcha de 21 anos.

Mesmo com roupa, quem está nu desde a comprovação da violação do painel eletrônico é ACM. Depois de fingir tranquilidade no discurso de despedida, ao deixar a tribuna quase despencou ao chão. Conseguiu manter a pose até chegar ao gabinete, onde desabou e, aos prantos, abraçou o amigo e embaixador do Brasil em Roma, Paulo Tarso Flecha de Lima. Era a consciência de que chegavam ao fim 50 anos de uma carreira em que construiu fortuna e mandou e desmandou na Bahia e no País. Se perdeu o poder, ACM ainda terá de responder pelo crime. Além da tentativa de reabertura do processo no Senado, o Ministério Público Federal está abrindo procedimento sobre a prática de improbidade administrativa e prevaricação. Com toda a arrogância, ACM, agora sem imunidade, vai depor na Polícia Federal como um cidadão comum. Pior. Por ironia do destino, para se defender terá de voltar ao prédio da Procuradoria da República no Distrito Federal – o mesmo onde confessou aos procuradores Luiz Francisco de Souza, Guilherme Schelb e Eliana Torelly ter a lista com todos os que votaram a favor e contra Estevão.

Os juristas contra-atacam

Madi Rodrigues

Eles prometem ir até o fim. E o fim é o impeachment do presidente da República. Depois de enterrar a CPI da Corrupção, FHC ganhou cinco adversários de peso na área jurídica. Indignados com a liberação para deputados de R$ 80 milhões em verbas que ajudaram a convencê-los a não assinar o pedido de instalação da CPI no Congresso, os juristas Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, Goffredo da Silva Telles e Paulo Bonavides denunciaram FHC por crime de responsabilidade. Os argumentos para tanto foram encontrados no artigo 6º da Lei nº 1.079, de 1950 do Regimento da Câmara, que define como crime de responsabilidade impedir o livre funcionamento do Parlamento mediante suborno ou corrupção. A acusação foi protocolada na Câmara, no dia 18 de maio. No entanto, o presidente da Casa, Aécio Neves (PSDB-MG), em vez de remeter a denúncia ao plenário, arquivou a acusação. Em seu despacho, alegou falta de provas e de caracterização do crime. Os juristas esperavam por isso. De acordo com eles, outras 15 denúncias da mesma natureza contra FHC já foram arquivadas pelo ex-presidente da Câmara Michel Temer (PMDB-SP). Mesmo assim, não se deram por vencidos. Voltaram a Brasília na quarta-feira 30 e entraram com um recurso contra o despacho de Aécio. A apuração de crime de responsabilidade pode resultar em impeachment do presidente, prevê a lei.

Bandeira de Mello, 64 anos, professor da PUC-SP, é taxativo: “Atacamos o presidente porque liberar verbas para subornar deputados e conseguir que eles mudem suas decisões graças ao recebimento delas é um desvio de poder. Este é o pior governo da História do Brasil”, afirmou o jurista. Goffredo Telles, 86 anos, também é contundente: “O presidente usou de manobra para impedir a CPI, e isto é crime”, afirmou. Dallari, 69 anos, professor da USP, reforça o argumento: “Aécio não poderia impedir o seguimento da denúncia. Os requisitos formais do pedido foram obedecidos.” Ele justifica a acusação contra FHC: “Estamos acompanhando o desempenho do governo, verificando que a Constituição está cada vez menos prestigiada. Temos medo que daqui a pouco uma MP a revogue.”