Poucos escritores, em toda a história da literatura universal, exibiram de forma tão notável uma densidade cultural e uma ironia fina da qualidade do autor alemão Thomas Mann. Em tempos de mediocridade generalizada, escândalos e apagões, é um alívio constatar que a obra de Mann, inteligente, culta e deliciosamente envolvente, não foi esquecida e está cada dia mais atual. O bálsamo para a mesmice está sendo viabilizado em pequenas, mas delicadas, porções inéditas no Brasil de três obras não tão conhecidas do autor de A montanha mágica e da tetralogia José e seus irmãos. Duas novelas – A lei e A enganada (Mandarim, 174 págs., R$ 25), bem como o autobiográfico A gênese do Dr. Fausto – romance sobre um romance (Mandarim, 180 págs., R$ 25), são um colírio cultural para os tempos difíceis.

Nascido em Lübeck, em 1875, Mann criou sua primeira obra de fôlego, Os Buddenbrooks, com pouco mais de 19 anos. No livro, a história de uma provinciana família alemã que tenta manter-se à tona em meio ao turbilhão das mudanças do momento histórico, é possível detectar o embrião de praticamente toda a obra que Mann construiria sempre com os mais sólidos alicerces de uma cultura surpreendentemente vasta e abrangente. Uma obra que, em 1929, lhe valeu um dos mais merecidos Prêmios Nobel da história da Academia Sueca.

Quatro anos depois do Nobel, confessando-se enojado com a pequenez identificada em seu próprio povo, imerso em ilusões de grandeza e conquista territorial, Mann deixaria a Alemanha e se auto-exilaria na Suíça, que adotou como lar até morrer, em 1955. Humanista e crítico como poucos, o escritor foi execrado pelos dirigentes do nazismo crescente. Mas nem por isso obrigou-se a poupar da ironia aqueles que o incensavam, como os intelectuais americanos, que o chamaram para assumir uma cátedra na Universidade de Princeton. A ingenuidade autocomplacente detectada por ele na América é, por sinal, o mote da novela A enganada.

O tema é a paixão tardia de uma ainda atraente viúva do interior da Alemanha por um bem-apessoado jovem americano que quer conhecer melhor a Europa à custa de algumas aulas de inglês para senhoras entediadas. O contraste entre os dois mundos não podia ser mais gritante e irônico. A viúva Rosalie von Tümmlerr, no ocaso de sua juventude, reúne em si todas as amarras de um mundo engessado nas tradições, verdadeiro fascínio para o jovem arrivista. Este, o musculoso e sedutor Ken Keaton, soldado que optou por ficar pela Europa ao final da Primeira Grande Guerra, com seus bíceps bronzeados e a irreverência das camisas pólo, representa o choque do novo, de uma sociedade que começava a atropelar o velho com sua irresponsável e alegre ambição. A paixão é inevitável. Até compreensível, como refletem os atordoados filhos da viúva. Mas Thomas Mann – no fundo, ele também um irremediável europeu de pura e rígida cepa – não perdoa o desfrute. E o amor, que se ameaça inconsequente, tropeça e sucumbe à dura e cruel realidade de um corpo decadente.

Coerente com a absoluta independência do autor em relação à sua criatividade, a outra novela, A lei, escrita em 1944, em plena efervescência do anti-semitismo alemão, trata de dar nada menos que uma nova versão cética e científica para a história de Moisés e sua fuga do Egito com o povo judeu em busca da Terra Prometida. Sem medo de ser criticado, justamente durante o auge do holocausto, Mann faz questão de mostrar um Moisés de sangue mestiço, herança da jovem filha do faraó com um escravo judeu, morto após servir aos caprichos da luxúria da moça. Na visão de Mann, ele praticamente arrasta o que escolheu como seu povo para o sonho de uma nova terra. Mas precisa enfrentar pelo caminho os percalços da desconfiança.

Em A lei não há a menor tolerância para com a rabugice do populacho, que, em meio à busca do destino divino, não poupa Moisés da mesquinharia, da fofoca e da ingratidão. Este é o caráter leviano das massas, grita Mann no respeitoso silêncio de observador. Em qualquer momento e circunstância elas passam ao largo da divindade e exigem para ontem o que só se obtém investindo no amanhã. Não por acaso, o outro livro que está sendo lançado, A gênese do Dr. Fausto, faz tantas menções ao filósofo Theodor Adorno. Ele mesmo um crítico da cultura de massas, figura carismática da chamada Escola de Frankfurt, que assentou algumas das mais sólidas bases para a revolução cultural que se estenderia até o final dos anos 70.

Luz de velas – Ao contar a motivação que o levou a criar Doutor Fausto – inspirado em Fausto, de Goethe –, provavelmente a obra mais complexa e erudita de Mann, o autor diz que aos 70 anos se obrigou a estudar profundamente os mistérios da teoria musical, já que o personagem principal é um apaixonado pela música. Assim, Mann faz sua autocrítica e exorciza seus próprios fantasmas ao esparramar seu amor pelo neto Frido e escancarar o suicídio de suas irmãs. Muito mais se pode dizer de Thomas Mann. Mas melhor mesmo é ler sua obra, nem que seja à luz de velas. E que as musas abençoem quem teve a genial idéia de lançar estes dois livros por aqui.