Comissários e comissárias de bordo não estranham mais quando aquela passageira, morena e miúda, adentra o avião, sempre sorridente. Afinal, já é como se fosse da família. Poucos portugueses viajam tanto ao Brasil como a cantora Eugénia (não Eugênia) Melo e Castro. Em 20 anos foram pelo menos 60 travessias do Atlântico. Da relação afetuosa-musical que Eugénia mantém com nossa terra nasceram 12 discos. São parcerias autorais e vocais que estão associadas a grandes nomes como Tom Jobim, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Chico Buarque e Gal Costa, entre outros. É acompanhada deste dream team da MPB que Eugénia está lançando o álbum Surpresas – 20 anos de Brasil, uma coletânea de 17 canções com as participações estreladas. Nesta ligação com o Brasil, a cantora de voz doce e afinadíssima foi além. Sempre aos domingos, às 19h, na TV Cultura, ela cria e apresenta o programa Projeto Atlântico, produção da Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), com apoio da rede nacional, no qual são apresentados duetos inéditos de artistas brasileiros e portugueses. Para falar de seu trabalho e de seu programa, Eugénia recebeu ISTOÉ e deu a seguinte entrevista.

ISTOÉ – Qual sua relação com o Brasil?
Eugénia Melo e Castro
– Meu bisavô esteve no Brasil durante o ciclo da borracha, casou-se na Amazônia com uma brasileira e a levou para morar em Portugal. Essa bisavó é o meu único laço familiar com o Brasil.

ISTOÉ – Caetano Veloso certa vez disse que faz falta você cantar com sotaque brasileiro.
Eugénia
– Eu nunca poderia ter cantado com sotaque brasileiro pela simples razão que não saberia fazê-lo, pois não sinto a minha música dessa maneira. A minha idéia sempre foi a diferença do som das palavras. Descobri com os brasileiros que cantar em português é lindo, mas o meu desafio era a língua portuguesa que se fala em Portugal, total e possível. E além disso essa sempre foi a minha diferença. Hoje virou moda essa história dos sotaques trocados. Eu acho lindo para os outros, mas não me peçam para eu fazer isso, iria soar falso.

ISTOÉ – Você tem a mesma força, o mesmo requinte e acabamento técnico de Elis Regina. Até que poderiam ter feito um belo dueto.
Eugénia
– Mas nós fizemos um dueto sim. Quando eu tinha dez anos, Elis foi a Lisboa fazer nem sei o quê, era na época do Upa neguinho, cabelo supercurto a rapaz, vestido tubinho branco, ela foi numa noite de tertúlia de exilados brasileiros numa galeria de arte, a Quadrante, e tinha gente pendurada no teto. Elis chegou meio já tarde, todos pediram para ela cantar, tinha uns cabeludos com uns violões, enfim, ela disse que estava rouca – como eu a compreendo hoje – e sentou-se timidamente num banco comprido, perna cruzada. E quem estava sentada no outro lado do banco??? Eu!

ISTOÉ – Está curtindo fazer o Projeto Atlântico?
Eugénia
– Foi um exercício. Estou a par do que se passa no Brasil e em Portugal, fui acompanhando os movimentos. Achavam que era mais uma maluquice minha. E era de fato, mas valeu a pena. Só lamento terem ficado de fora pelo menos 15 duplas de artistas possíveis, mas o contrato só previa 13 duplas. Sempre foi muito difícil realizar as coisas. Primeiro cheguei sozinha, sem pedir licença a ninguém. Fui contra a corrente para ser a favor de uma outra coisa, maior.