Se as grandes obras aderem-se à imagem de um escritor, transformando-se em parte de sua identidade literária, muitas vezes é nas obras tardias (e até menos reconhecidas) que eles permitem entrever aquilo que guardam de mais íntimo, isto é, sua identidade pessoal. O alemão Thomas Mann (1875-1955), prêmio Nobel de 1929, é celebrado por livros extraordinários como A montanha mágica e Doutor Fausto, e mais conhecido do grande público graças à adaptação cinematográfica, dirigida por Luchino Visconti, de sua novela Morte em Veneza. Não são muitos, contudo, os que conhecem a novela O eleito (Mandarim, 272 págs., R$ 29,50), oportunidade dada agora aos leitores brasileiros, através do empenho de Lya Luft.

Mann publicou O eleito em 1951, aos 76 anos, quando já era um mito literário. É um ano particularmente difícil já que ele, cidadão americano desde 1944, é acusado de “comunista” e perseguido pelo macarthismo. Thomas Mann nunca foi um comunista, mas sim um humanista. Ao lançar O eleito, já era também um homem com espírito torneado pelas revelações radicais próprias da velhice. Neste sentido, a história de Gregório – o homem gerado de uma relação incestuosa entre seus irmãos, lançado ao mar a bordo de um barril, depois encontrado por religiosos, e que só aos 17 anos descobre o segredo de sua origem – pode ser lida como uma metáfora da condição humana. Condição que obriga o homem a avançar sempre às cegas. Gregório é um homem dobrado pelo destino. Submete-se a um longo percurso até se reencontrar com Deus – e o pecado. Mann nos mostra a parte crucial deste encontro, ficando de certo modo até incorporado aos aspectos da santidade. Primeiro, se torna cavaleiro. Depois, cego como Édipo, repete, ele próprio, o pecado de seus pais. Isola-se do mundo e, quando parecia condenado, a santificação lhe chega.
Os amores ambíguos, o desespero, as soluções radicais também fizeram parte da vida de Thomas Mann. Autor genial, dono de uma escrita solene, às vezes excessivamente sobrecarregada – aspectos que se abrandam em O eleito –, na velhice Mann se permite um pouco mais de ternura. Por isso, talvez, O eleito venha mais marcado por algumas sombras pessoais, entre elas seus dilemas religiosos. Sua irmã Carla, uma atriz, suicidou-se com cianureto, em 1910. Outra irmã, Júlia, terminou com a vida em 1927, enforcando-se. Em 1944, quem se mata tomando um vidro de soníferos é Nelly Mann, mulher de seu irmão Heinrich. Cinco anos depois, o filho Klaus, que era homossexual, se suicida. No seu diário, Mann acusa o filho morto de “falta de responsabilidade”, anotação que indica o peso da batalha íntima que se travava dentro dele. As tendências homossexuais do próprio Thomas Mann, explícitas antes do casamento com Katia Pringsheim, em 1904, quando já era pai de quatro filhos, voltam a atormentá-lo. Três anos antes de casar, a paixão não correspondida pelo jovem Paul Ehrenberg o lançara em grave depressão. A homossexualidade se torna na vida de Mann, sempre solene e com ar de grande patriarca, outra ferida que apesar de todos os esforços não consegue esconder.
É verdade que o pecado é também tema de grandes obras como o Doutor Fausto. Só que em O eleito o tema se torna mais íntimo, mais pessoal, aspectos que se exacerbam com o estilo fantasioso, de conto de fadas. O resultado é um livro delicado, que desmente um pouco o Thomas Mann sentencioso e poderoso, mas que acrescenta aspectos importantes, de delicadeza e até fraqueza, à biografia e à obra do escritor.