O depoimento da jornalista Maria Cecília de Azevedo Sodré, 46 anos, tem tudo para provocar um furacão nas investigações sobre o envolvimento das Forças Armadas nas mortes dos três maiores líderes políticos do País num intervalo de dez meses: os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart e o ex-governador Carlos Lacerda. “Mataram Lacerda”, afirma ela. Vinte e três anos após a morte, Maria Cecília falou pela primeira vez sobre o tórrido romance que manteve com o líder da extinta UDN nos dois últimos anos de vida do ex-governador. Numa entrevista exclusiva a ISTOÉ, a amante de Lacerda contesta as versões até agora conhecidas, de que ele andava doente e abatido. Para ela, nada indicava que o líder udenista pudesse morrer a qualquer momento. “Ele vivia o auge de sua glória, como homem, pensador e amante.” Oficialmente, Lacerda morreu em 1977, aos 63 anos, de infecção no coração (endocardite bacteriana) um dia depois de se internar na Clínica São Vicente, no Rio, com desidratação causada por uma gripe. Os indícios de que uma cooperação entre militares da Argentina, Chile, Paraguai e Brasil – a Operação Condor – foi montada em 1975 para combater opositores já levaram a Câmara dos Deputados a abrir investigações sobre as mortes de Jango e JK, ambas em 1976. A suspeita de assassinato de Lacerda ainda não é investigada.

A amante não é a única a discordar da maioria da família Lacerda, conformada com a versão oficial. A também jornalista Cristina Lacerda, 48 anos, filha do ex-governador, desconfia que ele tenha sido vítima da mesma operação que teria eliminado JK e João Goulart. Os três lideravam os maiores partidos extintos pelo golpe de 64 e morreram quando ainda articulavam o retorno às eleições diretas, após a frustrada tentativa de montagem da Frente Ampla, de oposição ao regime militar. Jango seria o candidato do PTB, JK concorreria pelo PSD e Lacerda pela UDN. “Imagino que tenham localizado o hospital e se organizado para se infiltrar lá e matar meu pai. Assim como há suspeitas de que trocaram o remédio de Jango, há a hipótese de que tivessem acompanhado meu pai durante a doença. Ele era um homem saudável”, recorda Cristina.

A amante de Lacerda reforça. “Não existia nada que pudesse fazê-lo entrar no hospital e sair morto. O País inteiro sabia que Carlos continuava atento”, diz Maria Cecília, endossando a tese de assassinato. Quando morreu, Lacerda mantinha o casamento de 40 anos com Letícia, mãe de Cristina, Sebastião e Sérgio. “Minha única intenção é esclarecer os fatos. Meu pai se sacrificou muito pelo Brasil”, desabafa Cristina, que descarta, no entanto, apoiar uma possível exumação do corpo do pai, classificando-a como violência.

Investigação – Um dos aspectos relevantes da fase final da carreira de Lacerda, segundo Cristina, foi a relação afetuosa com seus arquiinimigos Jango e JK, aos quais procurou para costurar a Frente Ampla. Lacerda foi cassado em dezembro de 1968 e esperava recuperar seus direitos políticos em 1978. Os documentos colecionados por Cristina evidenciam que Lacerda se reaproximava da esquerda. Golpista radical em 64, ele fora simpatizante do PCB até os 25 anos. Pouco antes de morrer, segundo Cristina, seu pai passava por uma crise existencial, com altos e baixos, e tomava remédio para emagrecer. Os problemas de saúde de Lacerda levam seu filho mais velho, Sebastião, a acreditar na morte por infecção no coração. Segundo ele, não há indícios que possam confirmar a hipótese de atentado. “Meu pai estava com a saúde debilitada”, diz ele.
Ao contrário da morte de Lacerda, que nunca foi objeto de investigação, o acidente que matou JK foi alvo de dois inquéritos policiais. Na tarde de 22 de agosto de 1976, um domingo, o ex-presidente deixou São Paulo e pegou a via Dutra em direção ao Rio no Opala dirigido por seu motorista particular Geraldo Ribeiro. Por volta de 18h, na altura do antigo quilômetro 165, em Resende (RJ), o carro se desgovernou, cruzou a pista e bateu de frente com uma carreta, que vinha em sentido contrário. Desde então, começaram as controvérsias. JK teria sido vítima de um atentado ou foi apenas um acidente comum, como concluiu a polícia em 1976 e 20 anos depois, quando foi reaberto o inquérito?

Boato – A família nunca acreditou na versão oficial, de que o carro de JK teria sido abalroado por um ônibus da Viação Cometa, e, por isso, teria se desgovernado. Das três mortes, a de JK é a mais misteriosa. Duas semanas antes do acidente, jornais, rádios e tevês haviam recebido a notícia de que o ex-presidente havia morrido, coincidentemente num desastre de carro.” O boato foi na verdade um balão de ensaio lançado pelos militares linha dura que queriam testar a reação do País à morte de JK”, afirmou Serafim Jardim, amigo do ex-presidente e autor do livro Juscelino Kubitschek.: onde está a verdade? Ao saber dos boatos, JK comentou com Serafim: “Estão querendo me matar, mas ainda não conseguiram.”
São inúmeras as falhas da investigação. Um dos fatos mais intrigantes é o de que os peritos não incluíram nos dois laudos feitos sobre o acidente as fotos dos corpos de JK e do motorista “por recomendação de ordem superior”. “Até hoje essas fotos não apareceram”, acrescentou Serafim. O amigo do ex-presidente ressalta ainda que apenas 9 dos 33 passageiros do ônibus foram ouvidos pela polícia e nenhum disse que o motorista Josias Nunes de Oliveira teria batido no carro de JK. O juiz Gilson Vitorino, de Resende, também o inocentou em sentença que consta do processo.

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O segundo laudo do acidente foi assinado pelo perito Sérgio de Souza Leite, que em 1995 foi demitido do Ins- tituto de Criminalística Carlos Éboli, do Rio de Janeiro, após ter sido alvo de denúncias contra seus laudos no Ministério Público. O perito aposentado Alberto Carlos Minas, que foi contratado pelos responsáveis pela reabertura do inquérito, em 1996, rechaçou as perícias feitas na época da morte do ex-presidente. “O ônibus não tocou no carro de JK. Se tivesse batido no Opala, como a versão oficial sustenta, o ônibus teria atropelado o carro onde estava Juscelino”, concluiu Minas. Permanece no ar a pergunta: O que fez o carro de JK se desgovernar?

As investigações passaram longe de um fato importantíssimo, comprovado por ISTOÉ na semana passada. Pouco antes de morrer, JK parou por cerca de 40 minutos no Hotel Fazenda Villa Forte, em Resende. O estabelecimento fica a menos de três quilômetros do local do acidente e seu dono era o brigadeiro Newton Villa Forte, um dos criadores do serviço secreto das Forças Armadas, embrião do SNI. Mesmo tendo ido para a reserva em 1949, o oficial foi ativo no golpe de 64, servindo de elo entre generais paulistas e mineiros que marcharam sobre o Rio a partir da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. Seria mera coincidência JK morrer minutos depois de deixar o hotel de um integrante da comunidade de informações, responsável pelos frequentes atentados contra os opositores do regime militar?

Perseguições – O brigadeiro Villa Forte morreu em 1981, mas seu filho Gabriel, 46 anos, um dos atuais donos do hotel, lembra de seus comentários sobre a passagem de Juscelino. “JK parou aqui para tomar água ou chá e esticar as pernas nas alamedas”, diz Gabriel. Na versão de seu pai, o brigadeiro reconheceu o ex-presidente e foi cumprimentá-lo. Segundo Gabriel, o hotel abrigou várias reuniões de oficiais de alta patente do serviço de inteligência, mas naquele dia não teria havido reunião. “Meu pai estudou com Castello Branco e deu aulas ao general João Figueiredo. Golbery esteve várias vezes aqui”, afirma. O episódio surpreendeu Maristela Kubitschek, filha do ex-presidente. “Nunca tinha ouvido esta história do hotel. A comissão é que vai poder investigar”, disse Maristela, referindo-se à comissão aberta a pedido do deputado Paulo Octávio (PFL-DF), genro de sua irmã Márcia.

A comissão que investiga a morte de Jango foi pedida pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). A história oficial conta que o ex-presidente morreu de ataque cardíaco em 6 de dezembro de 1976 em sua fazenda na Argentina. As dúvidas sobre o atestado de óbito – que fala apenas em enfermidad (doença) – atormentam a viúva Maria Thereza e os filhos João Vicente e Denise. Maria Thereza, 63 anos, começou a desconfiar de assassinato em 1982, quando surgiram as primeiras denúncias. João Vicente, 43 anos, subsecretário de Agricultura do Estado do Rio, acredita que o maior indício de que seu pai sofria perseguições foi a “visita” no início de 1976 de três brasileiros desconhecidos ao escritório de exportação onde Jango trabalhava, na avenida Corrientes, centro de Buenos Aires. “Um comando como este só não levou Wilson Ferreira Aldunate (candidato à presidência do Uruguai) porque ele fugiu de pijamas para a embaixada do México”, relata. João Vicente recebeu uma carta do pai em maio de 1976, alertando para a tensão em que vivia: “Há dois dias sequestraram do hotel nossos amigos Michellini e Gutierrez Ruiz (senador e deputado da Frente Ampla uruguaia, assassinados). Uma monstruosidade que me leva a pensar em meu futuro na Argentina.”

A família Goulart, que suspeita ter havido envenenamento ou troca do remédio para o coração, se recusava a permitir a exumação do corpo, mas mudou de idéia com as notícias sobre a Operação Condor. João Vicente alega que antes não existia tecnologia capaz de detectar com precisão a real causa da morte. “Nossa única condição à exumação é ter certeza de que serão usadas as técnicas mais eficazes”, exige o filho de Jango. Maria Thereza conta que nunca tinha lido o atestado de óbito. “Apenas dobrei o papel e o guardei na gaveta. Só soube pelo noticiário que o médico argentino escreveu apenas enfermidad. Acho estranhíssimo não haver um diagnóstico correto.”

Um romance de dois anos
Foto: Reprodução
“O grande prazer da minha vida foi encontrar um homem brincalhão”

Mulher de voz doce, a jornalista Maria Cecília de Azevedo Sodré mostra com orgulho as fotos de quando conheceu o ex-governador Carlos Lacerda, amigo de sua família. Numa delas, ainda bebê, ela é carregada no colo pelo homem que poderia ser seu pai. Em outra, aos 13 anos, está de mãos dadas com o político. “E com os olhos brilhando”, ressalta. O namoro começou quando Maria Cecília, aos 21 anos, trabalhava na editora Nova Fronteira, de Lacerda. “Nosso romance durou dois anos, até sua morte”, revela, emocionada.
A amante do ex-governador viveu momentos de muita ebulição.

Quando o romance começou, ela participava do movimento estudantil. As divergências políticas foram incapazes de abalar a paixão. Perguntada como uma jovem se apaixonaria por um homem 30 anos mais velho, ela não titubeia: “Justamente pelo que ele foi, pelos caminhos tortuosos que percorreu na política.” A jornalista diz ter descoberto naquele político full time uma enorme capacidade de amar. “O grande prazer da minha vida foi encontrar um homem brincalhão, que passava as noites contando estrelas”, derrete-se Maria Cecília, que mais tarde se casou e adotou seis filhos. Hoje vive com o marido em Miguel Pereira, região serrana do Rio.

Celina Côrtes

 
TRÊS MORTES SUSPEITAS


JUSCELINO KUBITSCHEK
JOÃO GOULART
CARLOS LACERDA
Morreu em uma colisão na via Dutra no dia 22 de agosto de 1976 Morreu em 6 de dezembro de 1976, em sua fazenda Mercedez, na Argentina. Morreu em 21 de maio de 1977, na Clínica São Vicente, no Rio
Principais dúvidas:
Principais dúvidas:
Principais dúvidas sobre sua morte:
* Por que os peritos foram proibidos de anexar ao laudo as fotos dos corpos de JK e seu motorista? * Como causa da morte, o médico pôs apenas a palavra enfermidad. * A amante Maria Cecília e a filha Cristina dizem que ele estava bem de saúde. As duas foram surpreendidas por seu súbito falecimento.
* Por que JK parou no hotel do brigadeiro Newton Villa Forte? * Amigos uruguaios foram assassinados pouco antes dele. * Como ele morreu um dia depois de ser internado para se tratar de desidratação?
* Como surgiu o boato da morte de JK duas semanas antes do acidente? * Segundo seus familiares, vinha sofrendo ameaças de morte.


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