De um lado da estrada fica a Cordilheira dos Andes, com seus picos cobertos de neve eterna. Do outro, a paisagem se movimenta ao sabor das estações do ano. Ao pé das muralhas rochosas, ora se vê o azul dos lagos, ora a aridez amarela e pedregulhenta do deserto. O que nunca muda na Patagônia é o frio, que sopra implacável das geleiras do extremo Sul do planeta em direção ao Centro-Sul da Argentina. Uma gravação do assobio do vento toca sem parar no primeiro dos quatro cômodos do Museu Leleque, uma casa modesta distante 180 quilômetros de Bariloche, na província argentina de Chubut. Ali estão guardados alguns achados arqueológicos, objetos, documentos e fotografias dos povos que habitam a região há quase 13 mil anos. O museu, patrocinado pela empresa italiana Benetton, é simples. Ele reproduz como era a vida desses nativos, cuja maior façanha foi a capacidade de resistir às baixíssimas temperaturas de uma terra tão inóspita.

A coleção de 15 mil peças começou pelas mãos do imigrante ucraniano Pablo Korschenewski. Radicado na Patagônia desde 1953, ele reuniu armas, roupas e adornos que mostram como viviam, comiam, amavam e guerreavam os povos nativos dessa região. Todo seu território engloba uma área de 800 mil quilômetros quadrados, equivalente à Espanha e à Itália juntas. Os povos que ali viviam eram nômades e moravam em tendas feitas de couro de lhama (animal típico dos Andes). Com base em fotografias e nos relatos dos índios, os diretores do museu construíram uma réplica da cabana em tamanho natural. Os nativos trocavam de acampamento conforme a época do ano. No inverno, protegiam-se do vento montando suas barracas nas encostas dos Andes. Armados de arco feito de tripa de animal e flecha esculpida em pedra, eles caçavam e plantavam. Durante o verão, os aborígines cruzavam a Patagônia em ziguezague até o oceano Atlântico. Ali se alimentavam de mariscos e carne de baleia.
Para suportar o frio, vestiam mantos feitos de pele animal e tinham como desafio manter o fogo aceso, apesar da fúria dos ventos. Essa era uma das tarefas das mulheres, responsáveis também pela agricultura e pela montagem e desmontagem da tenda. Aos homens cabia caçar, escolher a rota de migração, proteger o bando do ataque de outras tribos e da matança praticada pelos exploradores espanhóis, ingleses, libaneses, italianos, americanos e chilenos. “Os primeiros habitantes da Patagônia eram do período paleolítico e foram pioneiros em caçar animais com boleadeiras, laçadores feitos com tiras de couro de animal, que lançavam pedras”, explica Rodolfo Casamiquela, principal pesquisador do Centro Nacional Patagônio e diretor do Museu Leleque.

Darwin – Foi com a chegada dos espanhóis e de seus cavalos que o conflito no deserto se alastrou. Embora fossem bons artesãos de armas e guerreiros, os índios sucumbiram aos fuzis do homem branco. Nas paredes do Museu Leleque, as armas contam um pouco o que foi a destruição. Enquanto se protegiam com facões feitos de madeira, os índios foram assassinados às dezenas pelos disparos das armas de fogo. A população indígena foi praticamente dizimada pelos colonizadores europeus, num conflito de terras que se estende desde o século XVI até os dias de hoje. Em 1833, Charles Darwin, pai da teoria da evolução, visitou a região e denunciou a matança dos povos nativos promovida pelos conquistadores.

Foto: Divulgação
Acampamento de índios nômades que viviam em tendas feitas de couro de ihama e peregrinaram pela Patagônia em busca de calor e comida

Do conflito restaram poucos índios. A maior parte morreu de sarampo, sífilis, tuberculose e alcoolismo. Houve época em que um par de orelhas de um índio morto era moeda de troca e valia uma libra esterlina. Na sexta-feira 12, dia da cerimônia de inauguração do Museu Leleque, os poucos índios que sobraram da tribo Mapuche aproveitaram a presença de autoridades argentinas para protestar pelo derramamento de sangue de seus antepassados. Assim como os pataxós na comemoração dos 500 anos do Brasil, os índios argentinos reivindicavam um antigo desejo: a demarcação de suas terras.
Dentro do museu, andando com dificuldade, o imigrante Pablo Korschenewski também protestava contra o governo argentino. “Procurei todas as autoridades deste país, sem sucesso, e só aceitei doar a coleção para uma empresa estrangeira como a Benetton com a condição de que as peças nunca sairiam da Patagônia”, contou.
A iniciativa custou US$ 800 mil, pagos pela família italiana Benetton, dona de 900 mil hectares divididos em três fazendas argentinas. Ali, a empresa cria ovelhas para abastecer 15% de seu consumo de lã. Desde 1991, a Benetton assumiu o controle de um dos maiores latifúndios da região, a Compañia de Tierras Sud Argentino. Foi com esta empresa que o lendário assaltante americano Butch Cassidy negociou cavalos e terras, com o pseudônimo de Santiago Ryan. Em 1901, Butch Cassidy e seu companheiro Sundance Kid montaram esconderijo em Cholila, a 40 quilômetros de Leleque. Ali viveram até 1905, segundo relatos, fotos e documentos expostos no museu. Perseguidos pelos investigadores da Agência Pinkerton, eles acabaram mortos a tiros na Bolívia, em 1915.

Assim como os dois “bandoleiros” ianques, os índios da Patagônia também foram fuzilados à queima-roupa. Corpulentos, fortes, altos e saudáveis, eles assustaram os primeiros expedicionários da equipe do explorador português Fernão de Magalhães, em 1520. Naquela época, fazia sucesso na Europa um romance de cavalaria chamado Primaléon, que contava a história de heróis que derrotavam um gigante de nome Patagón. A semelhança com um dos personagens foi imediata e os espanhóis batizaram os nativos de “patagones”, dando origem ao nome da região. Os tempos mudaram, os índios não são numerosos nem fortes como antes. Mas a ameaça dos estrangeiros permanece. Hoje, os moradores da região temem a presença de proprietários de terras americanos, como o ator Sylvester Stallone e o magnata das comunicações Ted Turner, criador da rede de tevê CNN. Suas fazendas ficam próximas das estâncias turísticas banhadas pelos lagos azulados e entremeadas pela vegetação colorida da Patagônia. Stalone e Turner são os pioneiros de uma nova fase de ocupação do paraíso argentino. Para os habitantes da miserável e pobre Cholila de Butch Cassidy, a chegada dos investidores americanos representa mais uma etapa da exploração predatória de uma terra que nunca lhes pertenceu. Mesmo depois de 13 mil anos de ocupação.