Em novembro de 1904, a população do Rio de Janeiro, então capital federal, entrou em choque com a polícia por um motivo que seria inimaginável nos dias atuais. Era a Revolta da Vacina, com saldo de 30 mortos e quase mil presos. A causa de tanta indignação foi a lei de vacinação obrigatória, medida liderada pelo cientista Oswaldo Cruz (1872-1917), um jovem bacteriologista determinado a erradicar a varíola do País. O movimento partiu do Instituto Soroterápico Federal, criado em maio de 1900 para fabricar o soro contra a peste bubônica. Essa foi a origem da instituição, batizada de Fundação Oswaldo Cruz nos anos 70. Na quarta-feira 24, a Fiocruz, como agora é conhecida, chega ao seu centenário, com 12 unidades e três mil funcionários (um terço deles pesquisadores), fabricando 300 milhões de unidades de remédios por ano e concentrando 44% da produção nacional de vacinas.

O imponente Pavilhão Mourisco, sede da Fiocruz, espelha a nobreza da instituição. Erguido numa área de 800 mil metros quadrados em Manguinhos (Rio), inspirou-se na arquitetura de Alhambra, na Espanha. Cruz encarregou-se pessoalmente do traçado original do palácio, projetado pelo arquiteto português Luiz de Moraes Júnior. A construção foi iniciada em 1904. As varandas são revestidas de azulejos portugueses, o piso coberto de mosaicos franceses e as paredes e tetos decorados com figuras geométricas em altos relevo. Entrar no prédio lembra episódios da narrativa das Mil e uma noites. Foi exatamente essa a intenção de Cruz: criar um inesquecível marco para a ciência brasileira.

Seu desejo funcionou como profecia. Ao mesmo tempo que produz vacinas “associadas” – este ano será fabricada a tríplice viral, contra sarampo, rubéola e caxumba –, a Fiocruz está testando a produção de imunizantes feitos a partir de DNA, uma iniciativa de ponta. Retira-se um trecho do código genético do parasita a ser combatido, mais exatamente a proteína que produz o anticorpo, logo incorporado ao DNA de quem foi inoculado. Assim, a pessoa passa a produzir sua imunidade de forma permanente. Há oito anos um grupo desenvolve a vacina de DNA contra a dengue, atualmente em fase de teste em macacos. “Acredito que em cinco anos as vacinas de DNA começarão a ser comercializadas”, avalia o presidente da Fiocruz, o biologista molecular Eloi de Souza Garcia, paulista de 56 anos.

Boldo – Na área de medicamentos, a maior novidade é um fitoterápico à base de boldo, a ser comercializado até o fim do ano. O remédio conjuga efeito analgésico e antiinflamatório, sem afetar o estômago. “Inibe a formação de úlceras, um dos efeitos colaterais comuns dos analgésicos”, informa o biólogo Valber Frutuoso. Ele pesquisa o remédio há seis anos no Laboratório de Inflamação vinculado à Fiocruz.

Do orçamento anual de R$ 120 milhões, destinados à pesquisa, 70% vão para aplicações mais imediatas, como a produção de remédios e vacinas. O que mais projeta a Fiocruz internacionalmente, no entanto, são os 30% voltados à pesquisa pura, a partir das quais são criadas as novas tecnologias. Um exemplo é o projeto do laboratório de Bioquímica, Fisiologia e Imunologia de Insetos, onde é gerado o inseticida biodegradável, sem danos para o meio ambiente. A técnica é revolucionária. “Três laboratórios do mundo trabalham com isso. O nosso é um deles”, ufana-se o presidente da Fiocruz. Nessa linha, pesquisa-se o componente da planta cinamomo, capaz de inibir um hormônio do inseto, bloqueando sua reprodução. “Transformaremos esse componente em produto”, esclarece Garcia. Um dos aspectos que chamam a atenção, porém, é a variedade de assuntos que viram pesquisa dentro da Fiocruz. O pesquisador Wladimir Lobato Paraense, 85 anos, por exemplo, passa seus dias estudando caramujos e outros fatores envolvidos em doenças, como a esquistossomose.

E são iniciativas como essas que mantêm o alto nível da instituição onde o cientista Carlos Chagas (1879-1934) protagonizou uma proeza de repercussão mundial. Depois de se embrenhar pelos sertões, em 1909, Chagas percebeu que o inseto barbeiro, presente nas paredes dos barracos de pau-a-pique, hospedava o parasita Trypanosoma cruzi, causador do mal de Chagas. Pela primeira vez, um pesquisador, ao mesmo tempo, descrevia uma nova doença, descobria o agente causador, o vetor e a forma de transmissão. Outros cientistas da Fiocruz foram pioneiros no isolamento no País do vírus da hepatite A, da dengue e da Aids no Brasil. O HIV foi isolado em 1987 pelo patologista Bernardo Galvão, 54 anos, do Centro de Pesquisa Gonçalo Muniz, em Salvador, vinculado à Fiocruz. Hoje seu laboratório é um centro de referência no Brasil. Detectou-se uma série de variações do HIV, fundamentais para a futura produção de vacina, em fase de testes. “Só lamento que, apesar de toda a contribuição da Fiocruz para o controle da epidemia, o Programa Institucional de Aids esteja praticamente desativado por falta de verbas”, desabafa Galvão.
Mas nem só de vacinas e remédios vive a Fiocruz. Foi inaugurado no ano passado o Museu da Vida, um alegre espaço que contrasta com a sisudez científica. Crianças passeiam no “trenzinho da ciência” até a velha cavalariça, onde, no começo do século, ficavam os cavalos inoculados para a produção de soro. Hoje o local é ocupado por réplicas de animais pré-históricos e até por uma célula gigante. O passeio continua pelas trilhas do campus e termina em uma tenda, onde acontecem espetáculos teatrais sobre a história da ciência. A história da própria instituição pode ser dividida em três fases. Começa com a Revolta da Vacina, que evoluiu para campanhas nacionais de vacinação. O marco da segunda fase foi o Massacre de Manguinhos, em 1970, quando dez cientistas foram cassados pelo regime militar. A terceira fase é a da recuperação, a partir dse 1985, com a volta dos pesquisadores cassados e da auto-estima da Fiocruz.

ALTA produção Os números da entidade
É auto-suficiente na produção de vacinas contra a febre amarela, com 100 milhões de doses anuais, que representam 70% da produção mundial
Responde por 44% da produção nacional de vacinas
Fabrica por ano 300 milhões de unidades de medicamentos
Já formou mais de 15 mil profissionais na área de saúde
O sistema de bibliotecas atende a 250 mil usuários por ano
Presta 360 mil consultas médicas anuais
Realiza 5,7 mil análises de produtos usados pela população
Mantém 1,2 mil projetos de pesquisas e desenvolvimento tecnológico