Jaime Lerner critica a estratégia do governo para economizar energia, conta que FHC sabe da crise desde 1999 e ensina como atrair termelétricas

O governador do Paraná, Jaime Lerner (PFL), não anda nem um pouco animado com as medidas tomadas pelo governo para economizar energia elétrica. Em entrevista concedida a ISTOÉ, ele afirma que o presidente Fernando Henrique Cardoso teria maneiras mais eficientes para fazer a economia necessária e critica o uso do chicote contra os consumidores que não atingirem suas metas. “Economia se faz com racionalização, e não com racionamento”, diz Lerner, que rejeita a idéia de que o presidente tenha sido pego de surpresa pela escassez de energia e adverte para o fato de que desde 1999 o governo tinha conhecimento de que estava operando bem acima da margem de segurança do sistema elétrico. Apesar dos bons resultados da Companhia Paranaense de Energia (Copel), ele procura justificar sua privatização e conta a estratégia do Paraná para superar os riscos cambiais e atrair investimentos privados para o setor energético. Lamenta, no entanto, que a mesma estratégia não tenha sido usada pelo governo federal.

Lerner é pefelista e mostra não ter papas na língua quando o assunto é PFL. “O partido tem bons quadros, mas está velho, precisa se reciclar, se modernizar e deixar de ser adoçante de governos”, afirma. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

ISTOÉ

Como o sr. avalia o comportamento do governo federal diante da grave crise de energia?

Jaime Lerner

O governo está acenando com uma série de punições para a população. Isso não resolve e tem de ser corrigido. É preciso criar uma situação de co-responsabilidade. Tudo o que aprendi em 30 anos de vida pública é que, quando as pessoas sabem qual é o resultado de suas atitudes, elas ajudam a fazer acontecer. Para isso, é necessário montar uma boa equação de co-responsabilidade.

ISTOÉ

 Mas o governo não faz isso ao exigir que o setor público também economize?

Jaime Lerner

Não. Está ameaçando com supertarifas e cortes de luz. É muito difícil para o País cortar as possibilidades da geração de empregos. Não se pode chegar ao extremo do corte de energia. O que é preciso fazer é encontrar saídas para obter a economia necessária com racionalização, e não com racionamento. Para isso, o governo precisa dizer como economizar, e não anunciar a punição.

ISTOÉ

Isso é possível?

Jaime Lerner

 Claro. Os dados indicam que 15% da energia do Brasil corresponde a desperdício de todos os tipos. Outra perda decorre de não poder usar a energia existente. Esses são dois pontos fundamentais. Para corrigir isso é preciso mudar hábitos, mudar rotinas.

ISTOÉ

Como mudar esses hábitos?

Jaime Lerner

Vinte anos atrás, tivemos o problema da falta de combustível. Em Curitiba, organizamos uma equação que fez a cidade economizar 25% de combustível. Estabelecemos mudanças de costumes. Redirecionamos fluxos e mudamos hábitos. Isso foi fundamental para que as pessoas deixassem os carros em casa e passassem a fazer uso do transporte coletivo.

ISTOÉ

O sr. acredita que essa experiência possa ser transportada para a atual crise de energia?

Jaime Lerner

 É a mesma coisa. Sabemos que a partir de 2003, 2004 teremos geração de energia. O problema crítico é agora. A população quer ajudar, mas o governo precisa definir o jogo. No Paraná, estamos fazendo economia há quatro anos, com medidas como tarifa amarela, em que a concessionária faz um contrato com o consumidor, estabelecendo qual o consumo dele, com preços diferenciados. Há também a tarifa da madrugada, mais barata e muito usada, pois a pessoa pode esquentar a água durante a noite para garantir o banho quente pela manhã. Assim, a energia é usada em um horário de baixo consumo e não é necessário recorrer ao chuveiro elétrico, que é perverso para o sistema. Na iluminação pública, em 150 cidades já trocamos as lâmpadas de vapor de mercúrio por vapor de sódio, que é muito mais econômica. Reduzimos o desperdício na iluminação pública de 17% para 6%. Então, não é preciso apagar a luz para economizar. No governo do Estado temos o horário corrido, o que resultou em uma economia de outros 17%.

ISTOÉ

Redirecionar fluxos e mudar hábitos implica tempo. O Brasil tem tempo para enfrentar essa crise, sem radicalizar com apagões?

Jaime Lerner

 Essas coisas exigem vontade política. Mas são possíveis. Na época do choque do petróleo mostramos novos hábitos para a população e o resultado foi fantástico. Isso pode ser feito em menos de um mês. É perfeitamente possível estabelecer horários corridos em alguns setores.

ISTOÉ

Além do tempo, propostas como a troca da iluminação pública exigem investimentos. Há recursos para isso?

Jaime Lerner

 Existem financiamentos a juros baixos para isso e as contas de iluminação pública das prefeituras, que caem drasticamente. A prefeitura pode perfeitamente pagar esse financiamento com a economia feita na conta de luz do primeiro mês de adoção da medida.

ISTOÉ

Existe também um custo político com o apagão.
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Jaime Lerner

 Esse é incalculável. E o pior é que não resolve o problema

ISTOÉ

O conjunto de problemas atuais já está afetando a auto-estima do País…

Jaime Lerner

 E não dá mais para manter auto-estima só com a raquete do Guga e a seleção de futebol.

ISTOÉ

Nesse momento de crise de energia, o sr. defende a privatização da Copel. Quais as razões para isso?

Jaime Lerner

 A crise existe porque tivemos poucos investimentos na área de energia. Cerca de R$ 10 bilhões foram investidos. Pode parecer muito, mas é insuficiente e mesmo assim só ocorreram de 1997 para cá, com as privatizações. Precisamos de mais investimentos e não temos como extrair esses recursos do setor público. O que vivemos hoje não pode ser lido apenas como uma questão de privatizar ou não. O Brasil precisa de energia e ponto.

ISTOÉ

Como a Copel tem feito a sua parte?

Jaime Lerner

A Copel é indutora de vários processos de geração de energia. Das 49 usinas termelétricas e a gás que o governo planejava criar, a única que está em construção é a que a Copel pilotou, em Araucária. É uma parceria com a americana El Paso (60%), a Petrobras (20%) e a Copel (20%). Ao todo, a Copel estará produzindo 6,5 mil megawatts. Se o acordo para transformar o gás que estamos trazendo da Argentina em energia for concretizado, poderemos chegar a 10 mil megawatts. Isso é quase o dobro do que o Brasil produz no momento.

ISTOÉ

E essa geração se concretiza a curto prazo?

Jaime Lerner

A curto prazo nós tínhamos a possibilidade do gás. Isso não aconteceu porque não se resolveu o problema do risco cambial.

ISTOÉ

Por que não se resolveu?

Jaime Lerner

 Nós, no Paraná, encontramos a solução. Isso significa que o Brasil também poderia ter resolvido o problema. Estou me referindo a este momento crítico, este ano e o próximo. Porque, em um prazo de quatro ou cinco anos, só o Paraná vai produzir o equivalente a 15% ou 20% da produção nacional.

ISTOÉ

Como o Paraná resolveu o problema do risco cambial, indispensável para atrair termelétricas?

Jaime Lerner

O problema do risco cambial é que todos os insumos são pagos em dólar, a começar pelo capital. Montamos uma equação que fixou uma banda. Foi uma alternativa engenhosa. Criamos uma sociedade de propósito especial e fizemos uma fórmula que corrige anualmente o preço de todos os insumos em reais, pela variação do IGPM. Como o dólar se comporta a maior parte do tempo dentro dessa banda, o risco cambial é muito pequeno. Quando existe uma maxidesvalorização, o risco dela é compartilhado. Uma parcela fica com o investidor e outra com o comprador. Como ao longo de 20 anos isso se dilui, a fórmula foi aceita por todos.

ISTOÉ

Essa fórmula não foi apresentada ao governo federal para que novos investimentos fossem feitos no setor?

Jaime Lerner

 Não houve nenhuma consulta ao governo do Paraná. Tivemos oportunidade de apresentar essa solução em algumas reuniões técnicas, mas não temos conhecimento de que algo parecido tenha sido adotado em outros projetos.

ISTOÉ

O que o sr. acha de o presidente da República se mostrar surpreso com a situação? O sr. estaria surpreso no lugar dele?

Jaime Lerner

 A área técnica tem se reunido. Os técnicos têm reuniões trimestrais. O ex-ministro Rodolfo Tourinho não só conhecia o problema como o anunciou. Os jornais alardeavam isso há pelo menos três anos. Temos no sistema hidrelétrico um colchão de reserva, e calculamos a probabilidade de ter um descompasso significativo entre a oferta e a demanda em qualquer ponto do sistema. Quando essa probabilidade é maior do que 10%, acendem-se luzes vermelhas no sistema. Sabemos que esse limite é bastante confortável. A demanda vinha crescendo bastante e chegamos a trabalhar com até 16% de risco de termos uma diferença maior. Isso, desde 1999. Sabemos há tempo que estamos invadindo o colchão de segurança. Isso é público.

ISTOÉ

Então, por que o Paraná investiu e o Brasil, não?

Jaime Lerner

 Investimos porque achamos que era estratégico.

ISTOÉ

E não era estratégico para o Brasil?

Jaime Lerner

O Paraná se endividava para produzir energia e a repassava para São Paulo, pois na época não tínhamos a industrialização. Então, quando se falava em guerra fiscal, a nossa guerra fiscal era infra-estrutura, eram as grandes empresas saberem que nunca teriam problema de energia no Paraná. E é claro que essas grandes empresas que estão no Paraná hoje consideraram isso. E fizemos tudo isso sem colocar muito dinheiro. A Copel, há quatro anos, é minoritária nos grandes investimentos. O último grande investimento que ela fez foi a usina de Caxias, com mil megawatts.

ISTOÉ

E, hoje, como são feitos os investimentos com a Copel?

Jaime Lerner

 Hoje, a Copel talvez seja o grupo mais qualificado na área de energia e entra com seu know-how e um pouco de investimento. Ela sempre pilota o investimento com 20%, dificilmente ultrapassa isso. O sucesso está na capacidade de regular as questões estratégicas. O importante é ter essa condição.

ISTOÉ

Parece que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) não atrapalha o Paraná, mas atrapalha outros Estados.

Jaime Lerner

A Aneel funciona em relação ao Paraná como funciona com os outros Estados. É um problema de cada Estado resolver seus próprios problemas. Não é a Aneel que tem prejudicado, nem tampouco tirado a criatividade dos governantes. A Aneel não coloca obstáculos para quem quiser investir. A crítica que havia se dava em relação ao acúmulo de burocracia para quem quisesse colocar dinheiro no País, mas isso já está resolvido. Só no Paraná licitaremos três usinas dentro de duas semanas. E isso é verdadeiro para o País inteiro. O que tem havido é resistência por parte de alguns agentes financeiros, pois o Brasil ainda carrega o estigma de País caloteiro, criado com a moratória unilateral do Sarney. Os investidores não têm culpa disso. Mas o certo é que lá fora existem recursos abundantes e baratos.

ISTOÉ

O sr. tem problemas políticos no Paraná: por exemplo, com a vice-governadora, mulher do prefeito cassado de Londrina. Como está sua imagem com isso?

Jaime Lerner

 Todos os governos que fizeram o ajuste fiscal passam por um grande desgaste. Sou a favor da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas é preciso saber que o governo não começa no ano zero. Não posso atender muitas demandas e a oposição capitaliza isso.

ISTOÉ

Como o sr. está se sentindo no PFL?

Jaime Lerner

 O PFL tem excelentes quadros, mas parece um envelope velho, amarelado. Está antigo. O seu discurso precisa estar mais próximo da população. O partido precisa se atualizar e começar a ver o País com os olhos do povo, o que implica mudanças de discurso, de propostas e de compromissos. O PFL precisa deixar de ser adoçante de governos e ter seu próprio discurso. A época do acerto da dívida já passou. A estabilidade do real foi importante, mas agora é preciso avançar. Chegou a hora de se preocupar com os problemas das pessoas. Então, o partido terá que avançar. Não basta ser a favor ou contra a política econômica do governo.

ISTOÉ

Chegou a hora de o partido ter candidato próprio à Presidência?

Jaime Lerner

 Acho que o partido tem tudo para querer isso.

ISTOÉ

O sr. seria esse candidato?

Jaime Lerner

 Nem colocaria isso, é uma questão do partido. Apenas sinto que é o momento de avançar. Criamos uma geração que se especializou em denúncia. Agora temos que ir para a frente.

ISTOÉ

Como o sr. vê a situação do senador Antônio Carlos Magalhães?

Jaime Lerner

 Não vivo o dia-a-dia do Senado. Mas acho que o caminho dele é o de tentar dar a resposta pelo voto na Bahia.

ISTOÉ

O sr. acredita que ele vá renunciar?

Jaime Lerner

 Acho que esse é o caminho. E o partido já metabolizou isso.